Com efeito, numa ânsia de trabalho, Ricardo, após o jantar, logo nos deixava, encerrando-se no seu gabinete até às onze horas, meia-noite…
As nossas palavras, de resto, apesar da nossa intimidade, somavam-se apenas numa conversa longínqua em que não apareciam as nossas almas. Eu expunha-lhe os enredos de futuras novelas, sobre as quais Marta dava a sua opinião - lia-lhe as minhas páginas recém-escritas, sempre numa camaradagem puramente intelectual.
Até aí nunca me ocorrera qualquer ideia misteriosa sobre a companheira do poeta. Ao contrário: ela parecia-me bem real, bem simples, bem certa.
* * *
Mas aí, de súbito, uma estranha obsessão começou no meu espírito…
Como que acordado bruscamente de um sonho, uma noite achei-me perguntando a mim próprio:
- Mas no fim de contas quem é esta mulher?…
Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a encontrara o poeta? Mistério… Em face de mim nunca ela fizera a mínima alusão ao seu passado. Nunca falara de um parente, de uma sua amiga. E, por parte de Ricardo, o mesmo silêncio, o mesmo inexplicável silêncio…
Sim, em verdade, tudo aquilo era muito singular. Como a conhecera o artista - ele, que não tinha relações algumas, que nem mesmo frequentava as casas dos seus raros amigos - e como aceitaria a ideia do matrimónio, que tanto lhe repugnava?… O matrimónio? Mas seriam eles casados?… Nem sequer disso eu podia estar seguro. Lembrava-me numa reminiscência vaga: na sua carta o meu amigo não me escrevera propriamente que se tinha casado. Isto é: dizia-mo talvez, mas sem empregar nunca uma palavra decisiva… Aludindo a sua mulher, dizia sempre Marta - reparava agora também.
E foi então que me ocorreu outra circunstância ainda mais estranha, a qual me acabou de perturbar: essa mulher não tinha recordações; essa mulher nunca se referira a uma saudade da sua vida.