Sim, quando voltamos ao palacete, após termos passado por minha casa, já Marta regressara, e notei mesmo que já tinha mudado de vestido - embora contra o seu costume, não vestisse um traje de interior, mas sim uma toilette de passeio.
Lembro-me também de que durante toda a leitura da minha peça só tive esta sensação lúcida: que era bizarro como eu, no meu estado de espírito, podia entretanto trabalhar.
De resto, conforme observei, as minhas dores, as minhas angústias, as minhas obsessões eram intermitentes, tinham fluxos e refluxos: como nos dias de revolta social, entre os tiros de canhão e o tiroteio nas praças, a vida diária prossegue - também, no meio da minha tortura, seguia a minha vida intelectual. Por isso mesmo lograra esconder de todos, até hoje, a atribulação do meu espírito.
Mas, juntamente com a ideia lúcida que descrevi, sugerira-se-me durante a leitura outra ideia muito estrambólica. Fora isto: pareceu-me vagamente que eu era o meu drama - a coisa artificial - e o meu drama a realidade.
Um parêntese:
Quem me tiver seguido deve, pelo menos, reconhecer a minha imparcialidade, a minha inteira franqueza. Com efeito, nesta simples exposição da minha inocência, não me poupo nunca a descrever as minhas ideias fixas, os meus aparentes desvairos que, interpretados com estreiteza, poderiam levar a concluir, não pela minha culpabilidade, mas pela minha embustice ou - critério mais estreito - pela minha loucura. Sim, pela minha loucura; não receio escrevê-lo. Que isto fique bem frisado, porquanto eu necessito de todo o crédito para o final da minha exposição, tão misterioso e alucinador ele é.
* * *
Ricardo e Marta felicitaram-me muito pela minha obra - creio. Mas não o posso afirmar, em virtude do denso véu de bruma cinzenta que me envolvera, e que só me deixou nítidas as lembranças que já referi.