- E estas duas partes assim educadas, realmente instruídas do seu papel e aptas a desempenhá-lo, dominarão o elemento concupiscível, que ocupa o maior espaço na alma e que, por natureza, é no mais alto grau ávida de riquezas; vigiá-lo-ão, para evitar que, saciando-se dos pretensos prazeres do corpo, se desenvolva, revigore e, em vez de se ocupar da sua tarefa, tente subjugá-los e governá-los - o que não convém a um elemento da sua própria espécie - e subverta toda a vida da alma.
- Com certeza - disse ele.
- E dos inimigos do exterior não guardarão melhor toda a alma e todo o corpo, a primeira deliberando, o segundo combatente sob as ordens da primeira e executando corajosamente os projectos concebidos por esta?
- Certamente.
- Ora, chamamos ao indivíduo corajoso, creio eu, tendo em consideração a parte irascível da sua alma, quando esta parte salvaguarda, através de dores e prazeres, os preceitos da razão respeitantes ao que se deve ou não deve recear.
- É exacto.
- Por outro lado, chamamos-lhe sábio tendo em consideração essa parte dele mesmo que comanda e emite estes preceitos, parte que possui também a ciência do que aproveita a cada um dos três elementos da alma e ao seu conjunto.
- Perfeitamente.
- Mas como? Não lhe chamamos moderado devido à amizade e harmonia destes elementos, quando o chefe e os dois súbditos concordam que a razão deve governar e que não há rebelião contra ela?
- Sem dúvida - disse ele - que a moderação não é coisa diferente na cidade e no indivíduo.
- Por conseguinte - continuei -, o último será justo pela razão e da maneira que tantas vezes indicámos.
- Assim é preciso.
- Agora - perguntei -'-, a justiça embotou-se ao ponto de nos parecer diferente do que era na cidade?
- Não o creio - respondeu.
- É que, se houvesse ainda alguma dúvida na nossa alma, poderíamos fazê-la desaparecer completamente aproximando a nossa definição da justiça das noções comuns.
- Quais?
- Por exemplo, se tivéssemos de decidir a respeito da nossa cidade e do homem que, por natureza e educação, é semelhante a ela, se este homem, tendo recebido um depósito de ouro ou prata, parece desejar desviá-lo, achas que alguém o julgaria mais capaz de semelhante acção do que aqueles que não se lhe assemelham?
- Não me parece.
- Mas esse homem não estará igualmente limpo de sacrilégio, roubo e traição, tanto particular, em relação aos amigos, como pública, em relação à sua cidade?
- Estará limpo.
- E, naturalmente, de maneira nenhuma faltará à sua palavra, quer se trate de juramentos ou outras promessas.
- Como poderia fazê-lo?