- Por certo que não.
- Nesse caso, dizemo-lo?
- Dizemos.
- Bom. Depois disto, creio que temos de analisar a injustiça.
- Evidentemente.
- Ora, pode ser outra coisa além de uma espécie de sedição entre os três elementos da alma, uma confusão, uma usurpação das suas tarefas respectivas - a revolta de uma parte contra o todo para adquirir uma autoridade a que não tem direito, porque a sua natureza a destina a suportar uma servidão que não deve suportar o que é de raça real? É daqui, diremos nós, desta perturbação e desta desordem, que nascem a injustiça, a incontinência, a cobardia, a ignorância e todos os vícios, numa palavra.
- Com certeza.
- Mas - continuei -, visto que conhecemos a natureza da injustiça e da justiça, já vemos claramente em que consistem a acção injusta e a acção justa.
- Como?
- Não diferem - respondi - das coisas sãs e das coisas malsãs; o que estas últimas são para o corpo são-no para a alma.
- De que maneira?
- As coisas sãs engendram a saúde e as malsãs a doença.
-Assim é.
- De igual modo, as acções justas não engendram a justiça e as injustas a injustiça?
- Sim, necessariamente.
- Ora, engendrar a saúde é estabelecer, segundo a natureza, as relações de domínio e sujeição entre os diversos elementos do corpo; engendrar a doença é permitir-lhes governar ou ser governados um pelo outro contra a natureza.
- É isso.
- Portanto, engendrar a justiça não é estabelecer, segundo a natureza, as relações de domínio e sujeição entre os diversos elementos da alma? E engendrar a injustiça não é permitir-lhes governar ou ser governados um pelo outro contra a natureza?
- Sem dúvida.
- Por conseguinte, a virtude é, creio eu, saúde, beleza, boa disposição da alma, e o vício é doença, fealdade e fraqueza.
-Assim é:
- Mas as belas acções não levam à aquisição da virtude e as vergonhosas à do vício?
- Necessariamente.
-. Só nos falta agora analisar se é proveitoso agir com justiça, dedicar-se ao que é honesto e ser justo, quer se seja ou não conhecido como tal ou cometer a injustiça e ser injusto, mesmo que não se seja castigado e o castigo não nos torne melhores.