- Mas, por outro lado, esses temperamentos firmes e sólidos, a que nos confiamos de preferência, e que na guerra ficam impassíveis diante do perigo, comportam-se do mesmo modo em relação às ciências; como entorpecidos, são lentos em comover-se, lentos a compreender, e dormitam, bocejam à porfia quando têm de se entregar a um trabalho desta natureza.
- E isso.
- Ora, dissemos que os guardas deviam participar inteiramente desses dois caracteres, sem o que não podiam aspirar nem a uma educação superior nem às honras nem ao poder.
- E com razão.
- Pois bem! Admites que isso seja raro?
- Como não?
- Portanto, é preciso sujeitá-los às provas de que falávamos há pouco, trabalhos, perigos, prazeres e, além disso - omitimo-lo então, mas declaramo-lo agora -, exercitá-los num grande número de ciências, a fim de ver se a sua natureza está apta a suportar os mais altos estudos ou se perde a coragem, como outros fazem na luta.
- Efectivamente, convém sujeitá-los a essa prova. Mas quais são esses «mais altos estudos» de que falas?
- Lembras-te talvez - respondi - de que, depois de termos distinguido três partes na alma, servimo-nos dessa distinção para explicar a natureza da justiça, da moderação, da coragem e da sabedoria.
- Se não me lembrasse - observou - não mereceria ouvir o resto.
- Recordas-te também do que dissemos antes?
- De quê?
- Dissemos que para chegar ao conhecimento mais perfeito destas virtudes havia um caminho mais longo e que elas se revelariam claramente a quem o percorresse; mas que também era possível ligar a demonstração ao que fora dito anteriormente. Vós pretendestes que isso bastava e, desse modo, a demonstração que foi feita careceu, a meu ver, de exactidão. Se estais satisfeito, compete a vós dizê-lo.
- Mas parece-me que nos respondeste exactamente e é também a opinião dos outros.
- Mas, meu amigo - repliquei -, em semelhantes questões toda a exactidão que se afaste, por pouco que seja, da realidade não é uma exactidão total; com efeito, nada de imperfeito é exactidão total de nada; contudo, há às vezes quem imagine que isso basta e que não há necessidade de levar as investigações mais longe.
- Sim - disse ele - é a ideia que a preguiça inspira a muita gente.
- Mas, se há alguém que deva defender-se de a ter - observei -, é precisamente o guarda da cidade e das leis.
- Assim parece.
- É preciso, portanto, camarada, que ele siga o caminho mais longo e que trabalhe tanto em instruir-se como em exercitar o corpo; caso contrário, como dissemos, nunca chegará ao termo dessa ciência sublime que lhe convém muito particularmente.
