- Sem dúvida.
- Qual é, Gláucon, a ciência que arrasta a alma daquilo em que se torna para aquilo que é? Mas, por falar nisso, ocorre-me o seguinte: não dissemos que os nossos filósofos deviam ser na juventude atletas guerreiros?
- Sim, dissemos.
- Portanto, é preciso que a ciência que procuramos, além desta primeira vantagem, tenha ainda outra.
- Qual?
- A de não ser inútil a homens de guerra.
- Por certo que é preciso, se for possível.
- Ora, foi pela ginástica e pela música que os formámos inicialmente.
- Sim, foi.
- Mas a ginástica tem por objecto o que se transforma e morre, visto que é do desenvolvimento e do definhamento do corpo que se ocupa.
- Evidentemente.
- Portanto, não é a ciência que procuramos.
- Não.
- Será a música, tal como a descrevemos mais acima?
- Mas - replicou - ela não era, se bem te lembras, senão a contrapartida da ginástica, formando os guardas pelo hábito e comunicando-lhes, por meio da harmonia, uma certa consonância - e não a ciência - e uma certa euritmia por meio do ritmo; e nos discursos os seus caracteres eram semelhantes, quer se tratasse de discursos fabulosos ou verídicos; mas não comportava nenhum estudo que conduzisse ao objectivo que agora te propões.
- Lembras-me com toda a exactidão o que dissemos; na verdade, não comportava nenhum. Mas então, excelente Gláucon, qual será esse estudo? É que as artes pareceram-nos todas mecânicas...
- Sem dúvida. Mas que outro estudo nos resta se nos afastarmos da música, da ginástica e das artes?
- Pois bem! - respondi. - Se não encontrarmos nada fora disso, tomemos um desses estudos que abrangem tudo.
- Qual?
- Por exemplo, esse estudo comum, que serve para todas as artes, para todas as operações do espírito e todas as ciências e que é um dos primeiros a que todos os homens devem consagrar-se.
- Qual? - perguntou.
- Esse estudo vulgar que ensina a distinguir um, dois e três; quero dizer, numa palavra, a ciência dos números e do cálculo; não é verdade que nenhuma arte, nenhuma ciência, pode passar sem ela?
- Com certeza!
- Nem, por conseguinte, a arte da guerra?
- É forçoso que assim seja.
- Na verdade, Palamedes, sempre que aparece nas tragédias, apresenta-nos Agamémnon sob o aspecto de um general muito divertido.