- Isso é verdade.
- Mas parece-te que há nisso algo de surpreendente e não os desculpas?
- Em que podem ser desculpados?
- Eles estão no caso - expliquei - de uma criança adoptada que, criada no seio das riquezas, numa numerosa e nobre família, no meio de uma multidão de aduladores, descobrisse, ao tornar-se homem, que não é o filho daqueles que se dizem seus pais, sem poder descobrir os verdadeiros pais. Podes adivinhar os sentimentos que experimentaria para com os seus aduladores e os pretensos pais, antes de ter conhecimento da sua adopção e depois disso? Ou queres ouvir o que penso a esse respeito?
- Sim, quero - disse ele.
- Penso que começará por ter mais respeito pelo pai, a mãe e os supostos pais do que pelos seus aduladores, que os desprezará menos se se encontrarem em dificuldades, que estará menos inclinado a faltar-lhes com palavras e acções, que lhes desobedecerá menos, quanto ao essencial, que aos seus aduladores, enquanto ignorar a verdade.
- É provável - disse ele.
- Mas, quando conhecer a verdade, prevejo que o seu respeito e as suas atenções diminuirão para com os pais e aumentarão para com os aduladores, que obedecerá a estes muito mais do que antes, regulará a sua conduta pelos seus conselhos e viverá abertamente na sua companhia, ao passo que não se preocupará com o pai e os supostos antepassados, a não ser que seja de índole muito benévola.
- Tudo se passará como dizes; mas como se aplica essa comparação aos que se entregam à dialéctica?
- Aqui tens. Temos desde a infância máximas sobre a justiça e a honestidade: fomos formados por elas como se por pais; obedecemos-lhes e respeitamo-las.
- Efectivamente.
- Ora, há, opostas a essas máximas, práticas sedutoras que lisonjeiam a nossa alma e a atraem, mas não persuadem os homens minimamente prudentes, os quais honram as máximas paternes e lhes obedecem.
- É verdade.
- Ora bem! Vá-se perguntar a um homem assim: que é a honestidade? Quando tiver respondido o que aprendeu através do legislador, refutemo-lo repetidamente e de várias maneiras, levemo-lo a pensar que o que considera como tal não é mais honesto que desonesto; façamos o mesmo para o justo, o bom e todos os princípios que honra mais; depois disto como, diz-me, se comportará em relação a eles no aspecto do respeito e da submissão?