- Ora bem! A mansidão das democracias para com certos condenados não é elegante? Não viste já num governo desta natureza homens feridos por uma sentença de morte ou de exílio continuarem na sua pátria e circularem em público? O condenado, como se ninguém se preocupasse com ele nem o visse, passeia-se como um herói invisível.
- Tenho visto muitos - disse ele.
- E o espírito indulgente e nada peguilhento deste governo, mas, pelo contrário, cheio de desprezo pelas máximas que enunciámos com tanto respeito ao lançarmos as bases da nossa cidade, quando dizíamos que, a não ser que fosse dotado de excelente carácter, ninguém poderia tornar-se homem de bem se, desde a infância, não tivesse brincado no meio das coisas belas e cultivado tudo o que é belo - com que soberba um tal espírito, calcando aos pés todos estes princípios, despreza preocupar-se com os trabalhos em que se formou o homem político, mas honra-o se afirmar somente a sua benevolência para com o povo!
- É um espírito muito generoso - disse ele.
- Tais são - prossegui - as vantagens da democracia, com outras semelhantes. É, como vês, um governo agradável, anárquico e variado, que dispensa uma espécie de igualdade, tanto ao que é desigual como ao que é igual.
- Não dizes nada que não seja conhecido de toda a gente.
- Considera agora o homem que se lhe assemelha. Ou, antes, não devemos examinar, como fizemos para o governo, de que maneira se forma?
-Sim.
- Não é verdade? Será, julgo eu, o filho de um homem parcimonioso e oligárquico, educado pelo seu pai nos sentimentos deste último.
- Sem dúvida.
- Pela força, portanto, como o pai, dominará os desejos que o impelem para o esbanjamento e são inimigos do ganho, desejos a que chamamos supérfluos.
- Evidentemente - disse ele.
- Mas queres - perguntei - que, para evitar toda a obscuridade na nossa discussão, definamos primeiramente os desejos necessários e os desejos supérfluos?
- Sim, quero - respondeu.
- Ora, não é com razão que chamamos necessários aos que não podemos rejeitar e a todos aqueles que nos convém satisfazer? É que estas duas espécies de desejos são necessidades naturais, não é assim?
- Sem dúvida.
- É, pois, com razão que consideraremos estes desejos necessários.
- Com razão.
- Mas aqueles de que podemos desfazer-nos a tempo, cuja presença, além disso, não produz nenhum bem, e os que fazem mal- se chamarmos a todos estes desejos supérfluos, não estaremos a dar-lhes a qualificação conveniente?
- Sim, estaremos.