- Que seria então se o deus fixasse à volta da sua morada vizinhos em grande número, decididos a não suportar que um homem pretenda mandar noutro como senhor e a punir com o último suplício os que fossem surpreendidos em semelhante caso?
- Creio que a sua situação se agravaria ainda mais, se fosse assim cercado e vigiado por pessoas que seriam todas seus inimigos.
- Ora, com esse carácter que descrevemos, cheio de temores e desejos de toda a espécie, não é numa prisão semelhante que o tirano está acorrentado? Embora a sua alma seja ávida, é o único na cidade que não pode viajar, nem ir ver o que excita a curiosidade dos homens livres. Vive a maior parte do tempo fechado em casa como uma mulher, invejando os cidadãos que viajam e vêem o que é belo.
-.É verdade.
- Assim, para além de tais males, o homem mal governado em si mesmo, aquele que há instantes consideravas o mais infeliz de todos, o tirânico, quando não passa a vida numa condição privada, mas se vê obrigado por um capricho da sorte a exercer uma tirania e, impotente para se dominar a si mesmo, empreende mandar nos outros, é semelhante a um doente que não tem o domínio do corpo e, em vez de levar uma existência retirada, será forçado a passar a vida a bater-se com os outros e a lutar nos concursos públicos.
- A tua comparação é de uma exactidão impressionante, Sócrates.
- Ora, meu caro Gláucon, não é este o cúmulo da infelicidade? E aquele que exerce uma tirania não leva uma vida mais penosa ainda que aquele que, no teu entender, levava a vida mais penosa?
- Sim, certamente.
- Assim, na verdade, e apesar do que pensa certa gente, o verdadeiro tirano é um verdadeiro escravo, condenado a uma baixeza e a uma servidão extremas, e o adulador dos homens mais perversos; não podendo, de maneira nenhuma, satisfazer os seus desejos, parece desprovido de uma quantidade de coisas, e realmente pobre, àquele que sabe ver o fundo da sua alma; passa a vida num terror contínuo, sujeito a convulsões e a dores, se é verdade que a sua condição se assemelha à da cidade que governa. Mas ela assemelha-se a ele, não é assim?
- E muito - respondeu.
- Mas, além destes males, não se deve atribuir também a este homem aqueles de que falámos anteriormente, a saber, que é para ele uma necessidade, devido ao exercício do poder, tornar-se, muito mais que antes, invejoso, pérfido, injusto, sem amigos, hospedeiro e alimentador de todos os vícios: tudo aquilo porque é o mais infeliz dos homens e torna semelhantes a ele os que dele se aproximam?