- Mas é possível que o que não é nem um nem outro se torne um
e outro?
- Não me parece.
- E o prazer e a dor, quando se produzem na alma, são uma espécie de movimento, não é verdade? -Sim, é.
- Ora, não acabamos de reconhecer que o estado em que não se sente nem prazer nem dor é um estado de repouso, que se situa entre estas duas sensações?
- Sim, reconhecemo-lo.
- Como se pode então acreditar racionalmente que a ausência de dor seja um prazer e a ausência de prazer uma dor? - Não se pode, de maneira nenhuma.
- Portanto, este estado de repouso não é, mas parece, quer um prazer por oposição à dor, quer uma dor por oposição ao prazer; e não há nada de são nestas visões quanto à realidade do prazer: é uma espécie de prestígio.
- Sim - disse ele -, o raciocínio demonstra-o.
- Considera agora os prazeres que não se seguem a dores, a fim de não seres induzido a acreditar, no caso presente, que, por natureza, o prazer não é senão a cessação da dor e a dor a cessação do prazer.
- A que caso e a que prazeres te queres referir?
- Há muitos - respondi -, mas considera, sobretudo, os prazeres do olfacto. Com efeito, produzem-se subitamente, com uma intensidade extraordinária, sem terem sido precedidos de nenhuma aflição, e, quando cessam, não deixam depois deles nenhuma dor.
- Isso é verdade - concordou.
- Portanto, não nos deixemos persuadir de que o prazer puro é a cessação da dor ou a dor a cessação do prazer.
- Não.
- E, contudo, os pretensos prazeres que passam à alma através do corpo - e que são talvez os mais numerosos e mais vivos - pertencem a esta classe: são cessações de dores.
- Efectivamente.
- Não sucede o mesmo com esses prazeres e essas dores antecipados, que causa a expectativa?
- Sucede o mesmo.
- Ora, sabes o que são esses prazeres e a que mais se assemelham?
- A quê? - perguntou.
-- Pensas que há na natureza um alto, um baixo e um meio?
- Com certeza!
- Ora, na tua opinião, um homem transportado de baixo para o meio poderia evitar pensar que foi transportado para o alto? E, quando se encontrasse no meio e olhasse para o sítio que deixou, julgar-se-ia noutra parte que não fosse o alto, se não tivesse visto o alto autêntico?
- Por Zeus! A meu ver, não poderia fazer outra suposição.
- Mas se, em seguida, fosse transportado em sentido inverso, julgaria voltar para baixo, no que não se enganaria?
- Sem dúvida.