- Portanto, parece que a nossa tarefa consistirá em escolher, se formos capazes, os que estão por natureza aptos a guardar a cidade.
- Será essa, sem dúvida, a nossa tarefa.
- Por Zeus! - prossegui -, não é pequena a responsabilidade que assumimos! Contudo, não devemos perder a coragem, pelo menos enquanto as forças no-lo permitirem.
- Não, com efeito, não devemos perder a coragem - disse ele.
- Pois bem! - continuei. - Achas que o carácter de um cachorro de boa raça difere, no que respeita à guarda, do de um jovem bem nascido? - Que queres dizer?
- Que devem ter um e outro sentidos apurados para descobrirem o inimigo, velocidade para o perseguirem logo que o descubram e força para o combaterem, se for preciso, quando o alcançam.
- Com efeito - disse ele -, todas essas qualidades são exigidas.
- E também coragem para combater bem.
- Como não?
- Mas será corajoso o que não é irascível, cavalo, cão ou outro animal qualquer? Não notaste que a cólera é algo de indomável e invencível e que a alma que a possui não pode temer nem ceder?
- Notei.
- São estas, portanto, evidentemente, as qualidades que deve ter o guarda no que se refere ao corpo.
-Sim.
- E, no que se refere à alma, deve ser de temperamento irascível.
- Sim, também.
- Mas então, Gláucon - prossegui -, não serão ferozes entre si e para com os outros cidadãos com semelhantes temperamentos?
- Por Zeus! - disse ele -, é difícil que seja de maneira diferente!
- Contudo, é forçoso que sejam mansos para os seus e rudes para os inimigos; caso contrário, não esperarão que outros destruam a cidade: antecipar-se-lhes-ão e destrui-la-ão eles próprios.
- É verdade - confessou.
- Que faremos, então? - inquiri. - Onde encontraremos um carácter ao mesmo tempo manso e altamente irascível? Um temperamento manso é, com efeito, o oposto de um temperamento irascível.
- Assim parece.
- Mas, no entanto, se faltar uma destas qualidades, não teremos um bom guarda; ora, parece impossível reuni-las e segue-se que é impossível encontrar um bom guarda.
- Receio que sim - disse ele.
Hesitei um momento; depois, tendo considerado o que acabávamos de dizer, prossegui:
- Merecemos estar em apuros, meu amigo, por termos abandonado a comparação que nos tínhamos proposto.
- Como dizes?