- É evidente - disse ele.
- E, se compete a outros mentir, é aos chefes da cidade, para enganar, no interesse da cidade, os inimigos ou os cidadãos; a mentira está interdita a qualquer outra pessoa e afirmaremos que o particular que mente aos chefes comete um erro da mesma natureza, mas maior, que o doente que não diz a verdade ao médico, que o aluno que esconde ao pedótriba as suas disposições físicas ou que o marinheiro que engana o piloto quanto ao estado do navio e da tripulação, não o informando daquilo que faz, ele ou um dos seus camaradas.
- É inteiramente verdade - reconheceu.
- Por conseguinte, se o chefe surpreender em flagrante delito de mentira um cidadão
da classe dos artesãos,
seja adivinho, médico ou carpinteiro,
castigá-lo-á, como se introduzisse uma prática adequada a virar e a perder tanto uma cidade como um navio.
- Castigá-lo-á - disse ele -, se as suas acções corresponderem às suas . palavras.
- Mas quê! Não será a moderação necessária aos nossos jovens?
- Como não?
- Ora, para a maioria dos homens, os principais pontos de moderação
não são os seguintes: obedecer aos chefes e ser senhor de si mesmo no que respeita aos prazeres do vinho, do amor e da mesa?
- Assim parece.
- Então aprovaremos, creio eu, esta passagem em que Homero faz dizer a Diomedes:
... Os Aqueus, respirando força, iam em silêncio, receando os chefes,
e todas as passagens semelhantes.
- Certo.
- Mas que pensar deste verso:
Homem pesado de vinho, olhos de cão, coração de corça!
e do que se segue? Acaso são belas as impertinências que os particulares, em prosa ou em poesia, disseram aos seus chefes?
- Não são belas.
- Com efeito, julgo que não são coisas dignas de ser ouvidas para levar os jovens à moderação. Não é de admirar que elas lhes proporcionem outro prazer qualquer. Mas que te parece?
- Sou da tua opinião - disse ele.
- Ora bem! Quando um poeta faz dizer ao mais sábio dos homens que nada no mundo lhe parece mais belo que
... mesas carregadas de pão e carnes, e um escanção tirando da cratera o vinho que leva e deita nas taças,
achas que isso ajuda o jovem a tornar-se senhor de si mesmo? Convém-lhe ouvir contar
que não há destino mais horrível que morrer de fome