- Mas não se é sobretudo dedicado àquilo que se ama?
- Assim é preciso.
- Ora, um homem ama sobretudo aquilo que julga ser do seu interesse, cujo êxito ou fracasso considera como seus.
- É verdade - disse ele.
- Portanto, escolheremos entre os guardas os que, após um exame, nos parecerem que poderão fazer, durante toda a sua vida e com toda a boa vontade, o que considerarem proveitoso à cidade, sem nunca consentirem em fazer o contrário.
- Efectivamente, são esses que convêm - aprovou.
- Assim, creio que é preciso observá-los em todas as idades, para ver se se mantêm fiéis a esta máxima e se, fascinados ou constrangidos, não abandonam nem esquecem a opinião que lhes impõe que trabalhem para o maior bem da cidade.
- Que entendes por esse abandono? - perguntou.
- Vou-to dizer - respondi. - Parece-me que uma opinião sai do espírito voluntária ou involuntariamente; sai voluntariamente a opinião falsa, quando se é iludido, involuntariamente toda a opinião verdadeira.
- Quanto à saída voluntária, compreendo; mas, quanto à involuntária, preciso de explicações.
- Como assim? Não pensas, como eu, que os homens são involuntariamente privados dos bens e voluntariamente dos males? Ora, iludir-se quanto à verdade não é um mal, firmar-se na verdade não será um bem?
- Tens razão - disse ele - e creio que é involuntariamente que se é privado da opinião verdadeira.
- E é-se privado dela por roubo, alucinação ou violência?
- Aí está outra coisa que não compreendo!
- Parece que me exprimo - retorqui - à maneira dos trágicos. Digo que se é roubado quando se é dissuadido ou se esquece, porque o tempo, num caso, e a razão, no outro, nos furtam a opinião sem que nos dêmos conta. Compreendes agora?
- Compreendo.
- Digo que se é vítima quando o desgosto ou a dor forçam a mudar de opinião.
- Também compreendo isso e é exacto.
- Portanto, dirás comigo, julgo eu, que se fica iludido quando se muda de opinião sob o encanto do prazer ou a opressão do medo.
- Com efeito - confessou -, tudo o que nos engana parece seduzir-nos.
- Sendo assim, como dizia há pouco, é preciso procurar os guardas mais fiéis desta máxima, que prescreve que trabalhemos no que consideramos o maior bem da cidade. É preciso treiná-los desde a infância, lançando-os nas acções em que se pode, sobretudo, esquecê-la e ser enganado, depois escolher os que se recordam dela, que são difíceis de seduzir, e excluir os outros, não é assim?