Apenas neste sítio faltava rugosidade à superfície negra.
- Alguém tentou cortar o gargalo.
- Cortar, é o que julga?
- Está como se lacerado, dilacerado. Seja qual tenha sido o instrumento empregado, foi precisa força para imprimir estas marcas numa matéria tão dura! Mas qual é a sua opinião? Juraria que sabe mais do que diz.
Dacre sorriu e os seus olhinhos maliciosos revelaram-me que não me tinha enganado.
- Nos seus estudos de filosofia - perguntou-me - interessou-se pela psicologia dos sonhos?
- Ignorava que existisse uma psicologia desse género.
- Meu caro senhor, está a ver aquela prateleira por cima da vitrina das pedras preciosas? Está carregada com livros que, desde Alberto o Grande, tratam deste assunto. A psicologia dos sonhos é uma ciência, tal como as outras.
- Uma ciência de charlataes!
- O charlatão é sempre um pioneiro. Do astrólogo nasceu o astrónomo; do alquimista o químico; do mesmérico, o psicólogo experimental. O charlatão de ontem é o professor de amanhã. Um dia virá em que mesmo estas coisas subtis e impalpáveis a que chamamos sonhos serão classificadas, catalogadas, sistematizadas. Nesse dia, as pesquisas dos nossos amigos, que ocupam toda esta prateleira, deixarão de ser um motivo de chacota para o místico, mas os fundamentos de uma ciência.
- Admitindo que assim seja, que tem que ver a ciência dos sonhos com um grande funil de cabedal rodeado de cobre?
- Vou dizer-lho. Sabe que remunero um agente que está sempre atento às raridades e curiosidades para a minha colecção. Há alguns dias, soube que um comerciante dos cais arranjara um certo número de velharias: tinham sido encontradas no aparador de uma casa antiga situada ao fundo de uma rua do Quartier Latin. A sala de jantar dessa casa está decorada com um escudo com brasão d' armas: chaveirões e faixas vermelhas sobre fundo prata; uma investigação rápida provou que se tratava do brasão de Nicolas de la Reynie, um dos altos funcionários de Luís XIV.