- O Dâmaso tem-me dito que V. Ex.ª o conhece muito...
Ela erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.
- Mr. Guimarães?... Sim, conheço muito... Ultimamente víamo-nos menos, mas ele era muito amigo da mamã.
E depois de um silêncio, de um curto sorriso, recomeçando a puxar o seu longo fio de lã:
- Pobre Guimarães, coitado! A sua influência na Republica é traduzir notícias dos jornais espanhóis e italianos para o Rapel, que disso é que vive... Se é amigo de Gambeta, não sei, Gambeta tem amigos tão extraordinários... Mas o Guimarães, aliás bom homem e homem honrado, é um grotesco, uma espécie de Calino republicano. E tão pobre, coitado! O Dâmaso, que é rico, se tivesse decência, ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tão miseravelmente.
- Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que fala o Dâmaso...?
Ela encolheu mudamente os ombros: e Carlos sentiu pelo Dâmaso um asco intolerável.
Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante. Ela quis saber a idade de Carlos, ele falou-lhe do avô. E durante essas horas suaves em que ela, silenciosa, ia picando a talagarça, ele contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, os amigos, e as viagens... Agora ela conhecia a paisagem de Santa Olávia, o reverendo Bonifácio, as excentricidades do Ega. Um dia quis que Carlos lhe explicasse longamente a ideia do seu livro A medicina antiga e moderna. Aprovou, com simpatia, que ele pintasse as figuras dos grandes médicos, benfeitores da humanidade. Porque se glorificariam só guerreiros e fortes? A vida salva a uma criança parecia-lhe coisa bem mais bela que a batalha de Austerlitz. E estas palavras que dizia com simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, caíam no coração de Carlos e ficavam lá muito tempo, palpitando e brilhando...