Os Maias - Cap. 15: Capítulo 15 Pág. 466 / 630

Carlos, com efeito, recordou-se que Maria na véspera planeara ir à Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente nesse dia em que ele precisava ficar livre - ele e a sua bengala! Mas Melanie, passando então com um jarro de água quente, disse que a senhora ainda se não vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recomeçou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras.

Sentou-se por fim no banco de cortiça, descintou a Corneta sobrescritada para Maria, releu lentamente a prosa imunda: e, nesse número que lhe fora destinado a ela, todo aquele calão lhe pareceu mais ultrajante, intolerável, punível só com sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, inofensiva no silêncio da sua casa, alguém ousasse tão brutalmente arremessar esse lodo às mãos cheias! E a sua indignação alargava-se do foliculário que babara aquilo - até à sociedade que, na sua decomposição, produzira o foliculário. Decerto toda a cidade sofria a sua vermina... Mas só Lisboa, só a horrível Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.

E, no meio desta alta cólera de moralista, uma dor perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sórdido neste canto do mundo - mas, em suma, havia no artigo da Corneta uma calúnia? Não. Era o passado de Maria, que ela arrancara de si como um vestido roto e sujo, que ele mesmo enterrara muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o seu nome - e que alguém desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçava para sempre a sua vida como um terror sobre ela suspenso. Debalde ele perdoara, debalde ele esquecera. O mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.





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