Os Maias - Cap. 15: Capítulo 15 Pág. 493 / 630

Ega encolheu os ombros. O documento pertencia a Carlos... Mas enfim Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!

Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Dâmaso:

- E chamei eu àquele homem meu amigo!

- Tudo na vida são desapontamentos, meu Dâmaso! foi a observação do Ega, saltando alegremente os degraus.

Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrela, Carlos já esperava ao portão de ferro, numa impaciência, por causa do jantar na Toca. Enfiou logo para dentro atropelando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao Loreto.

- E então, meus senhores, temos sangue?

- Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o envelope.

Carlos leu a carta do Dâmaso. E foi um imenso assombro:

- Isto é incrível!... Chega a ser humilhante para a natureza humana!

- O Dâmaso não é o género humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas tu? Que ele se batesse?

- Não sei, corta o coração... Que se há de fazer a isto?

Segundo o Ega não se devia publicar; seria criar curiosidade e escândalo em torno do artigo da Corneta que custara trinta libras a sufocar. Mas convinha conservar aquilo como uma ameaça pairando sobre o Dâmaso, tornando-o para longos anos nulo e inofensivo.

- Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: é obra tua, usa-o como quiseres...

Ega guardou-o com prazer, enquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria saber como ele se portara naquele lance d'honra...

- Pessimamente! gritou Ega. Com expressões de compaixão; sem linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mão no sapato...

- Pudera! exclamou Cruges desafogando enfim. Vocês dizem-me que me ponha de cerimónia, calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde num tormento!

E não se conteve mais, arrancou o sapato, pálido, com um medonho suspiro de consolação.

No dia seguinte, depois do almoço, enquanto uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado numa poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Dâmaso: e pouco a pouco subiu nele a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão interessante para a fisiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no escuro de uma gaveta!...





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