A República - Cap. 4: Capítulo 4 Pág. 126 / 290

- E o adultério, a falta de solicitude para com os pais e de piedade para com os deuses ajustam-se mais aos outros do que a ele?

- Mais aos outros, naturalmente.

- Ora, a causa de tudo isso não está no facto de que cada elemento da sua alma desempenha a sua tarefa própria, quer para mandar, quer para obedecer?

- Está nisso e em nada mais.

- Agora, perguntas ainda a ti mesmo se a justiça é algo diferente da força que faz tais homens e tais cidades?

- Não, por Zeus - respondeu -, não pergunto.

- Eis então perfeitamente realizado o nosso sonho, acerca do qual dizíamos ter dúvidas, a saber, que seria muito provável que, assim que começássemos a fundar a cidade, deparássemos com determinado princípio e modelo da justiça.

- Assim é, realmente.

- Portanto, Gláucon, era uma imagem da justiça -. e por isso é que nos foi útil- a máxima que declarava que o homem nascido para ser sapateiro se devia ocupar exclusivamente de sapataria, o homem nascido para ser carpinteiro de carpintaria, e de igual modo para os outros.

- Aparentemente.

- Na realidade, a justiça é, ao que parece, algo de semelhante, com a diferença que não rege os assuntos exteriores do homem, mas os seus assuntos interiores, o seu ser real e o que realmente lhe diz respeito, não permitindo a nenhuma das partes da alma desempenhar uma tarefa estranha, nem às três partes usurpar reciprocamente as suas funções. Ela quer que o homem ponha perfeitamente em ordem os seus verdadeiros problemas domésticos, que assuma o comando de si mesmo, se discipline e conquiste a sua própria amizade; que estabeleça um acordo perfeito entre os três elementos da sua alma, assim como entre os três termos de uma harmonia a prima, a hípate, a média e as intermédias, se existirem -, e que, ligando-os uns aos outros, se transforme, de múltiplo que era, em absolutamente uno, moderado e harmonioso; que só então se preocupe, se tiver de se preocupar, em adquirir riquezas, cuidar do corpo, exercer a sua actividade na política ou nos assuntos privados, e que em tudo isso considere e denomine bela e justa a acção que salvaguarda e contribui para completar a ordem que implantou em si mesmo e sabedoria a ciência que preside a essa acção; que, pelo contrário, chame injusta à acção que destrói essa ordem e ignorância à opinião que preside a esta última acção.

- É inteiramente verdade, Sócrates

- Seja - retorqui. - Agora, se disséssemos que descobrimos o que é o homem justo, a cidade justa, e em que consiste a justiça num e noutra, julgo que talvez não nos enganássemos muito.





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