A República - Cap. 1: Capítulo 1 Pág. 24 / 290

— Este — disse eu. — Se me perguntasses se basta ao corpo ser corpo ou se tem necessidade de outra coisa, responder-te-ia: «Por certo que tem necessidade de outra coisa. Para isso é que a arte médica foi inventada: porque o corpo é defeituoso e não lhe basta ser o que é. Por isso, para lhe proporcionar vantagens, a arte organizou-se.» Parece-te que tenho ou não razão nestas palavras? — perguntei.

— Tens razão — respondeu.

— Mas como! Acaso a medicina é defeituosa? Geralmente, uma arte reclama certa virtude — como os olhos a vista ou as Grelhas o ouvido, pelo que estes órgãos têm necessidade de uma arte que examine e lhes proporcione a vantagem de ver e ouvir? E nessa mesma arte há algum defeito? Cada arte exige outra arte que examine o que lhe é vantajoso, esta, por sua vez, outra semelhante e assim até ao infinito? Ou examina ela própria o que lhe é vantajoso? Ou não tem necessidade nem dela própria nem de outra para remediar a sua imperfeição? É que nenhuma arte apresenta defeito ou imperfeição e não deve procurar outra vantagem a não ser a do indivíduo a que se aplica: ela própria, quando verdadeira, está isenta de mal e é pura enquanto se mantiver rigorosa e inteiramente conforme à sua natureza. Analisa, tomando as palavras no sentido exacto de que falavas. É assim ou não?

— Parece-me assim — disse ele.

— Portanto — prosseguiu —, a medicina não tem em vista a sua própria vantagem, mas a do corpo.

— Sim — reconheceu.

— Nem a arte hípico a sua própria vantagem, mas a dos cavalos; nem, em geral, qualquer arte a sua própria vantagem — pois que não tem necessidade de nada —, mas a do indivíduo a que se aplica.





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