A República - Cap. 10: Capítulo 10 Pág. 277 / 290

Repetiremos, portanto, que não se deve tomar a sério uma tal poesia, como se, sendo ela própria séria, chegasse à verdade, mas que é preciso, ao escutá-la, acautelar-se, quando se receia pelo governo da alma, e, finalmente, observar como lei tudo o que dissemos acerca da poesia.

- Estou inteiramente de acordo comigo.

- Com efeito, é um grande combate, amigo Gláucon, sim, maior do que se pensa, aquele em que se trata de nos tornarmos bons ou maus; por isso, nem a glória, nem as riquezas, nem a dignidade, nem mesmo a poesia, merecem que nos deixemos resvalar para o desprezo da justiça e das outras virtudes.

- Estou de acordo, depois do que foi dito, e creio que não há ninguém que deixe de concordar também.

- Contudo - prossegui -, ainda não falámos das recompensas maiores e dos prémios reservados à virtude.

- Devem ser extraordinariamente grandes se ultrapassarem os que enumerámos!

- Mas qual é a coisa grande que pode ter lugar num curto espaço de tempo? Com efeito, todo esse tempo que separa a infância da velhice é bem curto em comparação com a eternidade.

- Não é nada - acrescentou.

- Ora bem! Achas que um ser imortal deva inquietar-se com um período tão curto como esse, e não com a eternidade?

- Por certo que não; mas para que tende este discurso?

- Não observaste - respondi - que a nossa alma é imortal e nunca morre?

A estas palavras, olhou-me com ar surpreso, depois disse-me:

- Por Zeus, não! Mas poderás prová-lo?

- Sim, se não me engano, creio até que tu poderias fazê-lo, pois não é difícil.

- Sim, para mim é; mas gostaria de te ouvir demonstrar essa coisa fácil.

- Escuta - disse eu.

- Fala, então.

- Reconheces - perguntei - que há um bem e um mal?

- Sim.

- Mas concebe-los como eu?

- Como?

- O que destrói e corrompe as coisas é o mal; o que as conserva e desenvolve é o bem.

- De acordo.

- Ora, quando um desses males se prende a uma' coisa não a deteriora e não acaba por dissolvê-la e arruiná-la totalmente?

- Como não?

- Portanto, são o mal e o vício próprios, por natureza, de cada coisa que destroem essa coisa, e, se esse mal não a destrói, nada mais a pode decompor; com efeito, o bem nunca destruirá o que quer que seja, assim como o que não é nem um bem nem um mal.

- Na verdade, como seria possível?

- Se encontramos na natureza um ser que o seu mal torna vicioso, sem, contudo, poder dissolvê-lo e perdê-lo, não saberemos já que para um ser assim constituído não há destruição possível?

- Sim, aparentemente.





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