Os Maias - Cap. 5: Capítulo 5 Pág. 123 / 630

A figura que no escuro dos cortinados lhe aparecia, num vago dourado que provinha do reflexo de seus cabelos soltos, era a Gouvarinho - a Gouvarinho que não tinha o esplendor de uma deusa da Renascença como madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista pusera os seus olhos como a coronela de hussards: mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava mais e melhor que todas na imaginação de Carlos - porque ele esperara-a essa noite e ela não tinha aparecido.

Na terça-feira prometida Ega não veio buscar Carlos para se irem gouvarinhar. E foi Carlos que daí a dias, entrando como por acaso no Universal, perguntou rindo ao Ega:

- Então quando nos gouvarinhamos?

Nessa noite, em S. Carlos, num entreacto dos Huguenotes, Ega apresentou-o ao Sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frisas. O conde, muito amável, lembrou logo que já tivera, mais de uma vez, o prazer de passar pela porta de Sta. Olávia, quando ia ver os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios - uma formosa vivenda também. Falaram então do Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o conde, nada havia, no nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoável, pois nesses férteis vales nascera e se criara: e falou um momento de Formozelha, onde tinha casa, onde vivia idosa e doente sua mãe, a Sr.ª condessa viúva...

Ega, que afectara beber as palavras do conde, começou então uma controvérsia, sustentando como se se tratasse dos dogmas de uma fé, a beleza superior do Minho, «esse paraíso idílico.» O conde sorria: via ali, como ele observou a Carlos, batendo amavelmente no ombro do Ega, a rivalidade das duas províncias. Emulação fecunda, de resto, no seu pensar...

- Aí está, por exemplo, dizia ele, o ciúme entre Lisboa e Porto. É uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Áustria... Ouço por ali lamentá-la. Pois bem, eu, se fosse poder, instigá-la-ia, acirrá-la-ia, se v. exas. me permitem a expressão.

Nesta luta das duas grandes cidades do reino, podem outros ver despeitos mesquinhos, eu vejo elementos de progresso. Vejo civilização!

Proferia estas coisas como do alto de um pedestal, muito acima dos homens, deixando-as providamente cair dos tesouros do seu intelecto à maneira de dons inestimáveis.





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