A República - Cap. 1: Capítulo 1 Pág. 22 / 290

— És um sicofanta, Sócrates, na discussão — replicou. — Acaso chamas médico àquele que se engana em relação aos doentes, no momento próprio e na medida em que se engana? Ou calculador ao que comete um erro num cálculo, no momento exacto em que comete esse erro? Não; é por habito de fala, creio, que dizemos: o médico enganou-se, o calculador, o escriba, enganaram-se. Mas julgo que nenhum deles, na medida em que é o que lhe chamamos, se engana nunca; de modo que, para falar com precisão, visto que queres ser preciso, nenhum artesão se engana. Aquele que se engana fá-lo quando a ciência o abandona, no momento em que já não é artesão; assim, artesão, sábio ou governante, ninguém se engana no exercício das suas funções, embora toda a gente diga que o médico se enganou, que o governante se enganou. Portanto, admito que te tenha respondido há pouco neste sentido; mas, para o dizer do modo mais exacto, o governante, enquanto governante, não se engana, não comete um erro ao fazer passar por lei o seu maior bem, que deve ser realizado pelo governado. Deste modo, como a principio, afirmo que a justiça consiste em fazer o que é vantajoso para o mais forte.

— Seja, Trasímaco — disse eu. — Pareço-te um sicofanta?

— Exactamente — respondeu.

— Achas que, premeditadamente, para te prejudicar na discussão, te interroguei como o fiz?

— Tenho a certeza disso — respondeu. — Mas não conseguirás nada, porque não poderás esconder-te para me prejudicar, nem, abertamente, me dominares pela violência na disputa.

— Também não o tentarei — retorqui —, homem bem-aventurado! Mas, a fim de que tal não aconteça, define claramente se entendes no sentido vulgar ou no sentido exacto, de que acabas de falar, os termos governante, mais forte, para vantagem de quem será justo que o mais fraco trabalhe.





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