A República - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 73 / 290

depois levantando-se e errando, de alma agitada, pela borda do mar infecundo, nem tomando nas mãos o negro pó e espalhando-o na cabeça; nem chorando e lamentando-se tantas vezes e de tal maneira como Homero o representou; nem Príamo, cujo nascimento o aproximava dos deuses, suplicante,

espojando-se no pó,

chamando cada homem pelo seu nome,

E pedir-lhes-emos mais insistentemente ainda que não nos representem os deuses em pranto e dizendo:

Ai, desventurada! Ai, infeliz mãe do mais nobre dos homens! ...

E, se falarem assim dos deuses, que ao menos não tenham a audácia de desfigurar o maior dos deuses, a ponto de o fazerem dizer:

Ai de mim! é um homem querido, fugindo em volta da cidade, que os meus olhos vêem, e o meu coração sente-se desolado.

e noutro ponto:

Ai de mim! o destino de Sarpedon, o mais caro dos homens, exige que seja domado por Pátroclo, o Menoitiada.

Se, com efeito, meu caro Adimanto, os nossos jovens tomassem a sério tais discursos, em vez de rirem como de fraquezas indignas dos deuses, ser-lhes-ia difícil, sendo apenas homens, julgá-los indignos de si mesmos e exprobar o que poderiam dizer ou fazer de semelhante; mas, ao mínimo infortúnio, abandonar-se-iam sem vergonha e sem coragem às queixas e lamentações.

- É verdade o que dizes - confessou.

- Ora, não deve ser assim; acabamos de ver a razão e é preciso acreditar nela enquanto não formos persuadidos por outra melhor.

- Com efeito, não deve ser assim.

- É preciso também que os nossos guardas não sejam amigos de riso. Quase sempre, quando nos entregamos a um riso violento, este estado provoca na alma uma mudança igualmente violenta.

- É o que parece - disse ele.

- Portanto, é inadmissível que se representem homens dignos de estima dominados pelo riso, e muito mais quando se trata dos deuses.

- Muito mais, certamente.

- Por conseguinte, não aprovaremos esta passagem de Homero sobre os deuses:

Um riso inextinguível entre os deuses bem-aventurados quando viram Hefesto manquejar pelo palácio.

Não podemos aprová-lo, segundo o teu raciocínio.

- Partindo do princípio - disse ele - de que esse raciocínio é meu! Efectivamente, não podemos aprová-lo.

- Mas também devemos ter em grande conta a verdade. Se há pouco tínhamos razão, se realmente a mentira é inútil aos deuses, mas útil aos homens, sob a forma de remédio, é evidente que o emprego de tal remédio deve ser reservado aos médicos e os profanos não lhe devem tocar.





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