A República - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 90 / 290

Ou achas que não é uma vergonha e uma grande prova de falta de educação ser forçado a recorrer a uma justiça fictícia e tornar os outros senhores e juízes do seu próprio direito, na falta de justiça pessoal?

- É a maior vergonha que existe! - disse ele.

- Mas não achas que é uma vergonha ainda maior quando, não contentes com passarem a maior parte da vida nos tribunais a defender ou a intentar processos, as pessoas se vangloriam, por vulgaridade, de ser hábeis em cometer a injustiça, em poder usar todos os subterfúgios, fugir por todas as saídas e dobrar-se como o vime, para evitar o castigo? E isso por interesses mesquinhos e desprezíveis, porque não sabem quanto é mais belo e melhor ordenar a vida de modo a não ter necessidade de um juiz sonolento?

- Isso - concordou - é uma vergonha ainda maior.

- Por outro lado, recorrer à arte do médico, não para feridas ou para alguma dessas doenças próprias das estações, mas porque, sob o efeito da preguiça e do regime que descrevemos, se fica cheio de emanações e vapores como um pântano, e obrigar os subtis filhos de Asclépio a dar a essas doenças os nomes de «flatos» e «catarros», não é também uma coisa vergonhosa?

- Sim - respondeu -, e, realmente, trata-se de nomes de doenças novas e estranhas.

- As quais - repliquei - não existiam, creio eu, no tempo de Asclépio. Suponho-o porque, em Tróia, os seus filhos não censuraram a mulher que obrigou Eurípilo ferido a beber vinho pramniano polvilhado abundantemente de farinha de cevada e queijo ralado, o que parece inflamatório, assim como não desaprovaram o remédio de Pátroclo.

- Contudo, era - disse ele - uma beberagem bizarra para um homem naquele estado.

- Não - observei -, se reflectires que a medicina actual, que segue passo a passo as doenças, não foi praticada pelos Asclepíades antes da época de Heródico. Heródico era pedótribo; tornado valetudinário, combinou a ginástica com a medicina, o que serviu, primeiramente e sobretudo, para o atormentar e, em seguida, a muitos outros depois dele.

- Como, então? - perguntou.

-Preparando-lhe uma morte lenta - respondi. - Com efeito, como a sua doença era mortal, seguiu-a passo a passo, sem conseguir, julgo eu, curá-la; renunciando a qualquer outra ocupação, passou a vida a tratar-se, devorado de inquietação sempre que se afastava um pouco do regime habitual; deste modo, arrastando uma vida langorosa, chegou à velhice à força de engenho.





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