A República - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 94 / 290

Quanto ao homem hábil e desconfiado, que cometeu muitas injustiças e se julga esperto e sábio, dá provas, certamente, de consumada prudência quando trata com os seus semelhantes, porque se refere aos modelos dos vícios que alberga dentro de si; mas, quando se encontra com gente já muito avançada em idade, revela-se tolo, incrédulo a despropósito, ignorante do que é um carácter são, porque não possui este modelo dentro de si. Todavia, como se encontra mais vezes com os maus do que com os homens de bem, passa mais por sábio do que por ignorante aos seus olhos e aos dos outros.

- É inteiramente verdade - disse ele.

- Portanto - prossegui -, não é neste homem que devemos procurar o juiz bom e sábio, mas no primeiro. Com efeito, a perversidade não poderia conhecer-se a si mesma e conhecer a virtude, ao passo que a virtude de uma natureza cultivada pela educação conseguirá, com o tempo, conhecer-se a si mesma e conhecer o vício. É, portanto, ao homem virtuoso, parece-me, e não ao mau, que compete tornar-se hábil.

- Também a mim me parece.

- Assim, estabelecerás na cidade médicos e juízes tais como os descrevemos, para tratarem os cidadãos que são bem constituídos de corpo e alma; quanto aos outros, deixaremos morrer os que têm o corpo enfermiço; os que têm a alma perversa por natureza e incorrigível serão condenados à morte.

- É certamente o melhor que há a fazer para os próprios doentes e para a cidade.

- Mas é evidente - prossegui - que os jovens se precaverão de ter necessidade de juízes se cultivarem essa música simples que, dizíamos nós, engendra a temperança.

- Sem dúvida.

- E não é verdade que, seguindo as mesmas indicações, o músico que pratica a ginástica conseguirá dispensar o médico, excepto nos casos de urgência?

- Creio que sim.

- Mesmo nos seus exercícios e trabalhos, propor-se-á estimular a parte generosa da sua alma, de preferência a aumentar a sua força, e, como os outros atletas, não regulará a sua alimentação e os seus esforços com vista ao vigor corporal.

- Certíssimo - disse ele.

- Ora, Gláucon - perguntei -, os que fundamentaram a educação na música e na ginástica fizeram-no para formar o corpo por meio de uma e a alma por meio de outra?

- Porquê essa pergunta?

- É possível- respondi - que uma e outra tenham sido estabelecidas principalmente para a 'alma. - Como assim?

- Não notaste qual é a disposição de espírito dos que se entregam à ginástica durante toda a vida e não se interessam pela música?





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