Pediu-me que fosse passar com ele uma temporada a Soutelo, se queria voltar ao mundo com alma nova. Anuí, e lá me detive dois meses, voltando com o estômago arruinado pelo sarro do muito toucinho sobre o qual o meu amigo me prometia reconstruir o aparelho espiritual.
Observei, na Foz, que Silvestre procurava a distracção do jogo: dizia que a fortuna dos seus credores dependia dos ganhos que ele obtivesse. Os credores do meu amigo perdiam com ele, como pessoas infelicíssimas que eram.
Explicava Silvestre a excentricidade deste mundo, julgando-o bom e de nenhum modo interessado em ludibriar-me, o mundo folgou de explorar um tolo que abria o coração e a algibeira a todas as perfídias e zombarias.
Não tive um sincero amigo que me desse dinheiro sem primeiro me furar as algibeiras para o aparar com uma das mãos, enquanto a outra mo emprestava, já cercado dos juros. Os meus mais dedicados amigos serviam-me de indicadores de usurários, que me davam o décimo do valor da letra, que eu assinava. Era um jogo de ladrões; foram empréstimos da infâmia; só podem ser pagos com infames meios. A consciência de Santo António e de S. Francisco das Chagas não foram mais puras do que há de ir a minha à presença do supremo Juiz. Creio que não devo nada, porque os juros que paguei excedem o capital: ora o que eu não devo só por absurdo posso pagá-lo com o que não for meu.
Parece-me que a lógica manqueja nesta argumentação. Seja como for, há muito quem deixe de pagar como Silvestre da Silva; mas não pagar, firmado em raciocínios, à primeira vista, irrefutáveis, nisso é que ele foi singular.
Direi o que me pareceu a vida doméstica do meu amigo.
D. Tomásia adorava-o e, sem o querer, polira-se por amor dele, a ponto de renunciar às suas antigas ocupações de portas adentro.