Os Maias - Cap. 5: Capítulo 5 Pág. 115 / 630

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Imediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o manuscrito, espalmou-o, deu um puxão ao colarinho - e Carlos, que se pousara à borda do divã, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se quase sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaça, num bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.

- Mas espera lá! exclamou ele. Deixa-me respirar. Isso não é o começo do livro! Isso não é o caos...

Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou também.

- Não, não é o primeiro episódio... Não é o caos. É já no século XV... Mas num livro destes pode-se começar pelo fim... Conveio-me fazer este episódio: chama-se a Hebreia.

A Cohen! pensou Carlos.

Ega tornou a alargar o colarinho - e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finais dos períodos. Depois da sombria pintura de um bairro medieval de Heidelberg, o famoso Átomo, o Átomo do Ega, aparecia alojado no coração do esplêndido príncipe Franck, poeta, cavaleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coração de herói palpitava pela judia Ester, pérola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabino Salomão, um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio teológico do Geral dos Dominicanos.

Isto contava-o o Átomo num monólogo, tão recamado de imagens como um manto da Virgem está recamado de estrelas - e que era uma declaração dele, Ega, à mulher do Cohen. Depois abria-se um intermédio panteísta: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na línguagem da luz, ou na eloquência dos perfumes, a beleza, a graça, a pureza, a alma celeste de Ester - e de Rachel... Enfim, chegava o negro drama da perseguição: a fuga da família hebraica, através de bosques de bruxas e brutas aldeias feudais; a aparição, numa encruzilhada, do príncipe Franck que vem proteger Ester, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanática, correndo a queimar o rabino e os seus livros hereges; a batalha, e o príncipe atravessado pelo chuço de um reitre, indo morrer no peito de Ester, que morre com ele num beijo.





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