Enchendo quase a parede do fundo, o famoso armário, o «móvel divino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseática, luxuoso e sombrio, tinha uma majestade arquitectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus, imagens rígidas, envolvidas nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um troféu agrícola com molhos de espigas, fouces, cachos de uvas e rabiças de arados; e, à sombra destas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos, tocavam num desafio bucólico a frauta de quatro tubos.
- Então, hein? dizia Carlos. Que móvel! É todo um poema da Renascença, Faunos e Apóstolos, guerras e geórgicas... Que se pode meter dentro deste armário? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como num altar-mor.
Ela não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do passado, de uma beleza fria, e exalando a indefinida tristeza de um luxo morto: finos moveis da Renascença italiana, exilados dos seus palácios de mármore, com embutidos de Cornalina e ágata que punham um brilho suave de jóia sobre a negrura dos ébanos ou cetim das madeiras cor de rosa; cofres nupciais, longos como baús, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Príncipes, pintados a purpura e ouro, com graças de miniatura; contadores espanhóis empertigados, revestidos de ferro brunido e de veludo vermelho, e com interiores misteriosos, em forma de capela, cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e além, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de cetim toda recamada de flores e d'aves de ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versículos do Alcorão, desdobrava-se a pastoral gentil de um minuete em Citera sobre a seda de um leque aberto...