Os Maias - Cap. 16: Capítulo 16 Pág. 545 / 630

Não estava no feitio da vida contemporânea que duas crianças separadas por uma loucura da mãe, depois de dormirem um instante no mesmo berço, cresçam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parábolas remotas dos seus destinos - para quê? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo ponto, num leito de concubinagem! Não era possível. tais coisas pertencem só aos livros, onde vêm, como invenções subtis da arte, para dar, à alma humana um terror novo... Depois levantava os olhos para a janela alumiada - onde o Sr. Guimarães decerto rebuscava os papeis na mala. Ali estava porém esse homem com a sua história em que não havia uma discordância por onde ela pudesse ser abalada!... E pouco a pouco aquela luz viva, saída do alto, parecia ao Ega penetrar nessa intrincada desgraça, aclará-la toda, mostrar-lhe bem a lenta evolução. Sim, tudo isso era provável no fundo! Essa criança, filha de uma senhora que a levara consigo, cresce, é amante de um brasileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. Num bairro vizinho vive outro filho dessa mulher, por ela deixado, que cresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo, ele destaca nesta cidade provinciana e pelintra. Ela por seu lado, loura, alta, esplêndida, vestida pela Laferrière, flor de uma civilização superior, faz relevo nesta multidão de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatalmente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se atraem! há nada mais natural? Se ela fosse feia e trouxesse aos ombros uma confecção barata da loja da América, se ele fosse um mocinho encolhido de chapéu coco, nunca se notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se era certo, o amarem-se era provável... E um dia o Sr. Guimarães passa, a verdade terrível estala!

A porta do hotel rangeu no escuro, o Sr. Guimarães adiantou-se, de boné de seda na cabeça, com o embrulho na mão.

- Não podia dar com a chave da mala, desculpe V. Ex.ª É sempre assim quando há pressa... E aqui temos o famoso cofre!

- Perfeitamente, perfeitamente...





Os capítulos deste livro