- Mas que dizer dos que consentem, que se apressam até a servir tais cidades? Não admira a sua coragem e complacência?
- Sim, com excepção dos que se deixam enganar e se julgam políticos autênticos porque são louvados pela multidão.
- Que dizes? Não desculpas esses homens? Achas que uma pessoa que não sabe medir, a quem outras pessoas no mesmo caso diriam que tem quatro côvados, poderia evitar pensar que é essa a sua medida?
- Não - confessou -, não o creio.
- Por conseguinte, não te irrites contra eles; com efeito, esses homens são os mais encantadores do mundo! Fazem leis sobre os assuntos que enumerámos há pouco e reformam-rias, supondo que conseguirão pôr fim às fraudes que se cometem nos contratos e nos negócios de que ainda agora falávamos: não sabem que, na realidade, cortam as cabeças de uma hidra.
- Efectivamente - disse ele -, não fazem outra coisa.
- Quanto a mim - prossegui -, não pensaria que, numa cidade mal ou bem governada, o verdadeiro legislador tivesse de preocupar-se com este género de leis: na primeira, porque são inúteis e de nenhum efeito; na segunda, porque qualquer pessoa descobrirá uma parte e a outra derivará das instituições já estabelecidas.
- Que nos falta então fazer ainda em legislação? - perguntou.
- A nós, nada - respondi -, mas a Apolo, ao deus de Delfos, falta fazer as maiores, as mais belas e as primeiras das leis.
- Quais?
- As que dizem respeito à construção dos templos, aos sacrifícios dos deuses e, heróis, ao enterro dos mortos e às cerimónias que nos tornam as suas almas propícias. Efectivamente, não possuímos esta ciência; por isso, ao fundarmos a cidade, não devemos obedecer a mais ninguém, se formos prudentes, nem aceitar outro guia além da nossa pátria. Ora, este deus, em tais assuntos, é o guia nacional de todos os homens, visto que profere os seus oráculos sentado na Ônfale, no centro da Terra.
- Tens razão - disse ele -, é assim que se deve fazer.
- Bem, a tua cidade está fundada, filho de Aríston - prossegui. - Agora, arranja onde quiseres uma luz suficiente, chama o teu irmão, Polemarco, e os outros e considera se nos é possível ver onde reside nela a justiça, onde a injustiça, em que diferem uma da outra e qual das duas deve possuir quem quiser ser feliz, quer escape ou não aos olhos dos deuses e dos homens.
- É como se não dissesses nada! - interveio Gláucon. - Com efeito, prometeste-nos que serias tu a fazer essa pesquisa, pretendendo que seria ímpio para ti não ajudar a justiça por todos os meios ao teu alcance.