- Assim, se quando tem sede alguma coisa a puxa para trás, é, nela, um elemento diferente daquele que tem sede e a leva, como um animal selvagem, a beber; com efeito, dissemos que o mesmo sujeito, na mesma das suas partes, e relativamente ao mesmo objecto, não pode provocar ao mesmo tempo efeitos contrários.
- Por certo que não.
- De igual modo, penso que seria errado afirmar que as mãos do archeiro esticam e largam o arco ao mesmo tempo; mas pode-se dizer que uma das mãos o estica e a outra o larga.
- Com certeza.
- Agora, afirmaremos que se encontram por vezes pessoas que, tendo sede, não querem beber?
- Sem dúvida - respondeu -, encontram-se muitas e frequentemente.
- Pois bem! - repliquei. - Que dizer dessa gente senão que existe na sua alma um princípio que lhes ordena e outro que lhes proíbe beber, este diferente e senhor do primeiro?
- Por mim, é o que penso.
- Ora, o princípio que admite semelhantes defesas não provém, quando existe, da razão, ao passo que os impulsos que governam a alma e a absorvem são engendrados por disposições doentias?
- Assim parece.
- Por conseguinte - prossegui -, não erraremos ao considerar que se trata de dois elementos distintos entre si e ao chamar àquele pelo qual a alma raciocina o elemento racional desta e àquele pelo qual ama, tem fome, tem sede e voa incessantemente em torno dos outros desejos o seu elemento irracional e concupiscível, amigo de certas satisfações e de certos prazeres.
- Não - disse ele -, não erraremos ao pensar assim.
- Admitamos então que distinguimos estes dois elementos na alma; mas o princípio irascível, através do qual nos indignamos, constitui um terceiro elemento ou é da mesma natureza que um dos outros dois e qual deles?
- Talvez seja da mesma natureza que o segundo, o concupiscível.
- Sucedeu-me - prossegui - ouvir uma história em que acredito: Leôncios, filho de Aglaion, ao regressar um dia do Pireu, seguia pela parte exterior da muralha setentrional quando viu cadáveres estendidos perto do carrasco; ao mesmo tempo que um vivo desejo de observá-los, sentiu repugnância e afastou-se; durante alguns instantes lutou consigo e tapou a cara; mas, por fim, dominado pelo desejo, esbugalhou os olhos e, correndo para os cadáveres, clamou: «Aí tendes, maus génios, fartai-vos deste belo espectáculo!»
- Também ouvi contar isso.