- Esta história - observei - mostra, no entanto, que a cólera luta às vezes contra os desejos e, por isso, distingue-se deles.
- Efectivamente, mostra.
- Em muitas outras ocasiões, também - continuei -, quando um homem é arrastado à força pelos desejos, apesar da razão, não notamos que se censura a si mesmo, se irrita contra o que o violenta e que, nesta espécie de querela entre dois princípios, a cólera alinha como aliada ao lado da razão? Mas dir-me-ás, creio eu, que a viste associada ao desejo, em ti mesmo ou nos outros, quando a razão decide que determinada acção não deve ir' contra a sua decisão.
- Não, por Zeus!
- Mas como? - perguntei. - Quando um homem admite estar errado, não é menos capaz, quanto mais nobre é, de se exaltar, suportando a fome, o frio ou qualquer outra incomodidade semelhante, contra aquele que, segundo pensa, o faz sofrer justamente? Por outras palavras, não se recusa a descarregar a sua cólera sobre aquele que o trata assim?
- É verdade - respondeu.
- Pelo contrário, quando se julga vítima de uma injustiça, não é então que ferve, se irrita, combate do lado que lhe parece justo - mesmo que haja fome, frio e todas as provações do género - e, firme nas suas posições, triunfa, sem se desviar desses sentimentos generosos antes de ter realizado o seu propósito, ou de morrer ou, como um cão para o pastor, de ser chamado à ordem, pela sua própria razão, e acalmado?
- Essa imagem é inteiramente exacta - observou. - Por isso é que, na nossa cidade, decidimos que os auxiliares ficariam sujeitos aos chefes como cães aos seus pastores.
- Compreendes perfeitamente o que quero dizer; mas, para além disso, fazes esta reflexão?
- Qual?
- Que é o contrário do que pensávamos há pouco que se nos revela a respeito do elemento irascível. Com efeito, há pouco pensávamos que se ligava a um elemento concupiscível, ao passo que agora dizemos que é preciso mais do que isso e que, quando uma sedição se ergue na alma, pega em armas a favor da razão.
- Com certeza.
- É então diferente da razão ou de uma das suas formas, de modo que não haveria três elementos na alma, mas apenas dois, o racional e o concupiscível? Ou então, assim como três classes compunham a cidade gente de negócios, auxiliares e classe deliberante -, assim também, na alma, o princípio irascível constitui um terceiro elemento, auxiliar natural da razão, quando uma má educação não o corrompeu?
- É necessário - respondeu - que constitua um terceiro elemento.