Dir-se-ia um homem que, depois de ter observado os movimentos instintivos e os apetites de um animal grande e robusto, por onde convém aproximar-se dele e tocá-lo, quando e por que motivo se irrita ou acalma, que gritos costuma soltar em cada ocasião e que tom de voz o amansa ou enfurece, depois de ter aprendido tudo isto por uma longa chamar-lhe-ia sabedoria e, tendo-a sistematizado numa espécie de arte, passaria a ensiná-la, embora não saiba realmente o que, nesses hábitos e apetites, é belo ou feio, bom ou mau, justo ou injusto; conformando-se no emprego destes termos aos instintos do grande animal; chamando bom ao que o contenta e mau ao que o importuna, sem poder legitimar de outro modo estes qualificativos; denominando justo e belo o necessário, porque não viu e não é capaz de mostrar aos outros quanto a natureza do necessário difere, na realidade, da do bom. Um homem assim, por Zeus!, não te pareceria um estranho educador?
- Com certeza! - disse ele.
- Pois bem! Que diferença há entre este homem e aquele que faz consistir a sabedoria em conhecer os sentimentos e os gostos de uma multidão composta de gente de toda a espécie, quer se trate de pintura, música ou política? É evidente que, se alguém se apresenta diante dessa turba para lhe submeter um poema, uma obra de arte ou um projecto de utilidade pública e se apoia, sem reserva, na sua autoridade, é para ele uma necessidade diomediana, como se costuma dizer, sujeitar-se ao que ela aprovar. Ora, já alguma vez ouviste algum dos que a compõem provar que essas obras são realmente belas, a não ser por razões ridículas?
- Não, nunca, e não o espero.
- Uma vez que tudo isto foi bem compreendido, diz-me: é possível que a turba admita e conceba que o belo em si mesmo existe separado da multidão das coisas belas ou as outras essências separadas da multidão das coisas particulares?
- De maneira nenhuma.
- Por conseguinte, é impossível que o povo seja filósofo.
- Impossível.
- E é necessário que os filósofos sejam criticados por ele.
- Sim.
- E também por esses particulares que se misturam com a turba e desejam agradar-lhe.
- É evidente.
- Sendo assim, que possibilidade de salvação vês para o temperamento filosófico, que lhe permita perseverar na sua profissão e atingir o seu objectivo?