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Capítulo 1: Capítulo 1

Página 26

Estávamos neste ponto da discussão e era evidente para todos que a definição da justiça tinha sido voltada do avesso, quando Trasímaco, em vez de responder, gritou:

— Diz-me, Sócrates, tens uma ama?

— O quê? — repliquei. — Não seria melhor responderes do que fazeres semelhantes perguntas?

— É que — retorquiu — ela não cuida de ti e não te chega a roupa ao pêlo quando é preciso, visto que não aprendeste a distinguir os carneiros do pastor.

— Porque dizes isso? — perguntei.

— Porque imaginas que os pastares e os boieiros se propõem o bem dos seus carneiros e dos seus bois e os engordam e tratam com vista a outra coisa para além do bem dos seus patrões e deles mesmos. E, de igual modo, julgas que os chefes das cidades, os que são realmente chefes, olham para os seus súbditos como se olha para carneiros e que se propõem, dia e noite, tirar deles um lucro pessoal. Foste tão longe no conhecimento do justo e da justiça, do injusto e da injustiça, que ignoras que o justo é, na realidade, um bem estranho, a vantagem do mais forte e daquele que governa e a desvantagem própria daquele que obedece e serve; que a injustiça é o contrário e comanda os simples de espírito e os justos; que os indivíduos trabalham para vantagem do mais forte e fazem a sua felicidade servindo-o, mas de nenhuma maneira a deles mesmos. Aqui tens, ó muito simples Sócrates, como é preciso encarar o caso: o homem justo é por toda a parte inferior ao injusto. Em primeiro lugar, no comércio, quando se associam um ao outro, nunca descobrirás, ao dissolver-se a sociedade, que o justo ganhou, mas que perdeu; em seguida, nos negócios públicos, quando é preciso pagar contribuições, o justo paga mais do que os seus iguais, o injusto menos; quando, pelo contrário, se trata de receber, um não recebe nada, o outro muito. E, quando um e outro ocupam algum cargo, sucede que o justo, mesmo que não haja outro prejuízo, deixa, por negligência, perigar os seus negócios domésticos e não tira da função pública nenhum proveito, por causa da sua justiça. Além disso, incorre no ódio dos parentes e conhecidos, ao recusar servi-los em detrimento da justiça; quanto ao injusto, é precisamente o contrário. É que entendo como tal aquele de que falava há pouco, o que é capaz de se sobrepor aos outros; examina-o bem, se quiseres saber até que ponto, no particular, a injustiça é mais vantajosa do que a justiça. Mas compreendê-lo-ás da maneira mais fácil se fores até à injustiça mais perfeita, a que leva ao cúmulo da felicidade o homem que a comete e ao cúmulo da infelicidade os que a sofrem e não querem cometê-la. Esta injustiça é a tirania que, por fraude ou violência, se apodera do bem de outrem: sagrado, profano, particular, público, e não em pormenor, mas na totalidade. Para cada um destes delitos, o homem que se deixa apanhar é punido e coberto das piores ignomínias — com efeito, essas pessoas que operam em pormenor são tratadas de sacrílegos, traficantes de escravos, furadores de muralhas, espoliadores, ladrões, consoante a injustiça cometida. Mas quando um homem, para além da fortuna dos cidadãos, se apodera das suas pessoas e os escraviza, em vez de receber esses nomes vergonhosos, é tido por feliz e afortunado, não sã pelos cidadãos, mas ainda por todos os que sabem que ele cometeu a injustiça em toda a sua extensão; com efeito, não receiam cometer a injustiça os que a reprovam: receiam ser vítimas dela. Assim, Sócrates, a injustiça levada a um grau suficiente é mais forte, mais livre, mais digna de um senhor do que a justiça e, como eu dizia a principio, o justo consiste na vantagem do mais forte e o injusto é em si mesmo vantagem e lucros.

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Capa do livro A República
Páginas: 290
Página atual: 26

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
Capítulo 1 1
Capítulo 2 45
Capítulo 3 71
Capítulo 4 102
Capítulo 5 129
Capítulo 6 161
Capítulo 7 189
Capítulo 8 216
Capítulo 9 243
Capítulo 10 265