- Se considerares que esse elemento da alma que, nas nossas próprias desgraças, reprimimos, que tem sede de lágrimas e gostaria de se saciar de lamentações - coisas que está na sua natureza desejar -, é precisamente aquele que os poetas se esforçam por satisfazer e contentar; e que, por outro lado, o elemento melhor de nós mesmos, não estando suficientemente formado pela razão e pelo hábito, desiste, do seu papel de guarda, em face desse elemento propenso às lamentações, com o pretexto de que é simples espectador das desgraças dos outros; que para ele não há vergonha, se um outro que se diz homem de bem verte lágrimas a despropósito, em louvá-lo e lamentá-lo; que considera o seu prazer um ganho de que não suportaria privar-se desprezando toda a obra. Com efeito, é dado a poucas pessoas, suponho, ponderar que o que se sentiu a propósito das desgraças de outrem se sente a propósito das suas; por isso, depois de termos alimentado a nossa sensibilidade com essas desgraças, não é fácil reprimi-la nas nossas?
- Nada mais verdadeiro.
- Ora, o mesmo argumento não se aplica ao riso? Se, embora tenhas vergonha de fazer rir, sentes um vivo prazer na representação de uma comédia ou, na vida privada, numa conversa burlesca, e não detestas essas coisas como baixas, não te comportas do mesmo modo que nas emoções patéticas? Com efeito, essa vontade de fazer rir que reprimias pela razão, receando granjear uma reputação de burlesco, liberta-la então, e, se lhe deres força, sucede-te muitas vezes que, entre Os teus familiares, te abandones ao ponto de te tornares autor cómico.
- É verdade - disse ele.
- E, relativamente ao amor, à cólera e a todas as outras paixões da alma, que acompanham cada uma das nossas acções, a imitação poética não provoca em nós efeitos semelhantes? Alimenta-as, regando-as, quando conviria secá-las, fá-las reinar sobre nós, quando deveríamos reinar sobre elas, para nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de sermos mais viciosos e miseráveis.
- Só posso concordar contigo.
- Assim, Gláucon, quando encontrares panegiristas de Homero, dizendo que este poeta fez a educação da Grécia e-que, para administrar os negócios humanos ou ensinar a sua prática, é justo pegar nele, estudá-lo e viver regulando de acordo com ele toda a existência, deves saudá-los e acolhê-los amigavelmente, como homens que são tão virtuosos quanto possível, e conceder-lhes que Homero é o príncipe da poesia e o primeiro dos poetas trágicos, mas saber também que em matéria de poesia não se devem admitir na cidade senão os hinos em honra dos deuses e os elogios das pessoas de bem.