Gente de Dublin - Cap. 10: Capítulo 10 Pág. 108 / 117

Mas só conseguia ouvir o ressoar dos risos e da disputa na entrada, alguns acordes no piano e várias notas de uma voz de homem entoando uma canção.

Ficou quieto, na escuridão do hall, olhando para a sua mulher e tentando perceber qual era a ária que estavam a cantar. A atitude dela, cheia de graça e de mistério, fazia lembrar um símbolo. Perguntou a si mesmo que símbolo representaria uma mulher parada na escuridão de uma escada, ouvindo uma música distante... Se ele fosse pintor, fixá-la-ia naquela atitude. O feltro azul do chapéu fazia realçar o cabelo cor de bronze contra a escuridão, e as almofadas mais escuras da sua saia faziam sobressair as mais claras. «Música distante», chamaria ele ao quadro, se fosse pintor.

A porta da rua fechou-se, e a tia Kate, a tia Júlia e Mary Jane entraram no hall, ainda a rir.

- O Freddy é terrível - disse Mary Jane. - Terrível!...

Gabriel não disse nada, mas apontou para a escada, onde estava a mulher. Agora que a porta se fechara, a voz do piano ouvia-se melhor. Gabriel levantou a mão, a fim de manter o silêncio. A canção parecia uma velha toada irlandesa e o intérprete estava incerto, na voz e nas palavras. A voz tornava-se num lamento, quer pela distância, quer pela rouquidão do cantor:

Oh!... A chuva cai nos meus cabelos E a humidade molha a minha pele, O meu bebé está deitado com frio...

- Oh!... - exclamou Mary Jane. - É o Bartell d' Arcy que está a cantar, e não o quis fazer durante toda a noite!... Vou ver se consigo que ele cante para nós, antes de se ir embora...

- Vê lá, Mary Jane - disse a tia Kate. Mary Jane subiu as escadas a correr, mas antes que chegasse ao cimo, a cantiga cessou e o piano foi fechado de repente.

- Que pena! - gritou a rapariga. - Ele vem para baixo, Gretta?

Gabriel ouviu a sua mulher responder afirmativamente e descer, para vir ao encontro deles. Alguns passos atrás, vinham Mr. Bartell d' Arcy e Miss O' Callaghan.

- Mr. d' Arcy - exclamou Mary Jane, não é bonito da sua parte ir-se embora, quando todos nós estávamos encantados a ouvi-lo.

- Toda a noite lhe pedi, eu e Mrs. Conroy, mas ele disse-nos que estava com uma grande constipação e que não podia cantar...

- Mr. d' Arcy, isso foi uma grande peta que arranjou!...

- Então não vê que eu estou rouco como uma multidão! - disse Mr. d' Arcy asperamente.

Entrou com rapidez na copa e vestiu o casaco. Os outros, com aquela resposta rude, não souberam o que dizer. A tia Kate franziu as sobrancelhas e fez sinal para mudarem de assunto.





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