Gente de Dublin - Cap. 10: Capítulo 10 Pág. 114 / 117

Levantou a cabeça dos seus braços e enxugou os olhos com as costas da mão, como se fosse uma criança. Uma nota, mais bondosa do que tencionava, passou na voz dele.

- Porquê, Gretta?.. - perguntou.

- Estou a pensar numa pessoa -que há muito tempo costumava cantar essa canção...

- E quem era essa pessoa? - indagou

Gabriel, a sorrir.

- Era uma pessoa que eu conhecia em Galway, quando vivia com a minha avó.

O sorriso fugiu do rosto de Gabriel. Uma cólera surda começou a reaparecer na sua mente, e o sangue começou a correr-lhe, irado, pelas veias.

- Alguém por quem estavas apaixonada? - perguntou ironicamente.

- Era um rapaz com quem eu me dava - respondeu ela. - Chamava-se Michael

Furey. Costumava cantar aquela canção, A Perda de Aughrim... Era muito delicado.

Gabriel ficou silencioso. Não queria que ela pensasse que estava interessado por aquele rapaz delicado.

- Vejo-o nitidamente... - disse Gretta, depois de um momento. - Que olhos ele tinha!... Grandes e escuros!. .. E uma expressão… uma expressão!...

- Bem, então estavas apaixonada por ele? - disse Gabriel.

- Costumávamos passear juntos, enquanto eu vivi em Galway...

Um pensamento atravessou o espírito de Gabriel.

- Talvez fosse por isso que tu querias ir a Galway com aquela rapariga, a Ivors?... - disse friamente.

Ela olhou-o e perguntou, surpreendida: - Para quê?

Os olhos de Gretta fizeram com que Gabriel se sentisse desairoso. Levantou os ombros e disse:

- Como é que hei-de saber?... Para o veres, talvez...

Ela olhou em silêncio para a janela.

- Ele morreu - disse, por fim. - Morreu com dezassete anos. Não é terrível, morrer tão novo?

- O que era ele?... - perguntou Gabriel, ainda ironicamente.

- Trabalhava na fábrica de gás - explicou ela.

Gabriel sentiu-se humilhado. A sua ironia falhara. E era triste aquela evocação da figura do morto, um garoto, na fábrica de gás. Enquanto ele estava cheio de recordações da vida íntima dos dois, cheio de ternura, de alegria e de desejo, ela tinha estado a compará-lo, em pensamento, com outro. Achou-se uma figura burlesca, agindo como um pedinte com as suas tias, um nervoso, um sentimentalista, discursando para pessoas vulgares... Instintivamente voltou-se mais de costas para a claridade, para que a mulher não visse a vergonha que lhe fazia arder a cara.





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