Contos de Mistério - Cap. 4: DE PROFUNDIS
(De profundis) Pág. 97 / 167

Em toda a minha vida nunca vi nada com maior clareza do que vi aquele homem. O luar atingiu-o em cheio, e nem três remadas distava de nós. Tinha o rosto mais inchado do que da última vez que falei com ele, e sarapintado, aqui e além, com negras pústulas, e a boca e os olhos abertos, como quem acaba de receber uma esmagadora surpresa. Trazia pendurada aos ombros uma tela branca; uma das mãos estava levantada até à orelha e a outra, encurvada, cruzava-lhe o peito. Vi-o saltar para fora da água e, naquela calmaria, as ondas que levantou embateram nos costados do barco. Acto contínuo a sua cara voltou a afundar-se nas águas e ouvi um barulho de dilaceração como o produzido por um molho de lenha a arder entre estalidos na chaminé durante uma noite áspera. Quando tornei a olhar não havia sinal algum dele, e apenas um rápido remoinho e ondulação no meio do mar calmo indicavam o lugar em que aquilo tinha ocorrido. Não pude mais tarde calcular sequer o tempo que permaneci, com um formigueiro em todo o corpo que me chegava até às pontas dos dedos, amparando com uma das mãos uma mulher que tinha desmaiado, e agarrando-me com a outra à amurada do barco. Tinha fama de homem frio e inacessível às emoções, mas desta vez, pelo menos, senti-me emocionado até ao tutano. Bati uma ou duas vezes na coberta com o pé, para certificar-me de que era senhor dos meus sentidos e de que não se tratava de uma partida louca do meu cérebro alvoroçado. Ainda assim continuava, sem sair do meu assombro, quando a mulher estremeceu, abriu os olhos, arquejou e, acto contínuo, se ergueu, com as mãos na amurada, e percorreu a superfície do mar, prateado pelo luar, com uma cara que envelhecera dez anos numa única noite de Verão...

- Viu a aparição? - murmurou.





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