A doença foi-me separando gradualmente do meu ambiente, dispensando-me de uma ruptura, de qualquer atitude violenta e inconsiderada. Muitos me mostravam ainda então a sua estima e alguns novos amigos vieram. A doença deu-me, entretanto, o direito de alterar por completo todos os meus hábitos: permitiu-me, ordenou-me que esquecesse; deu-me de presente a necessidade de permanecer deitado e ocioso, de ficar na expectativa e ter paciência... Ora isto é, precisamente, o que se chama pensar... Bastaram-me os olhos para acabar com a preocupação livresca, e toda a filologia, Libertei-me dos «livros»: durante anos seguidos nada li e este foi o maior benefício.
Este eu interior, este eu inevitavelmente recluído e condenado ao silêncio à força de ouvir incessantemente os outros (e ler não é outra coisa), despertou lenta, tímida, vacilantemente - mas acabando por encontrar o uso da palavra. Nunca tive tanto prazer em olhar para dentro de mim como nos períodos da minha vida em que estive mais doente e mais sofri. Basta ler Aurora ou, por exemplo, O Viajante e .a sua Sombra, para compreender o que significa esta «volta a mim próprio»: uma forma superior de cura. A outra cura proveio desta.
5
Humano, demasiado humano, este monumento de rigorosa disciplina de si próprio, com o qual pus termo bruscamente a tudo quanto se insinuara em mim de «delírio sagrado», de «idealismo», de «belos sentimentos», e de «feminismos», foi redigido, em grande parte, em Sorrento. Deve-se este livro, no fundo, ao senhor Peter Gast, que cursava então a Universidade de Basileia, e me era muito afeiçoado. Eu ditava, com a cabeça dolorida e coberta de compressas; ele escrevia e corrigia. Foi, na verdade, o verdadeiro escritor, enquanto eu fui apenas autor.