- Implorei que fosse para casa imediatamente e disse-lhe que podia morrer por causa da chuva. Mas ele respondeu-me que não queria viver. Vejo tão bem os seus olhos!... Estava de pé, contra o muro, lá onde havia uma árvore...
- E foi para casa? - perguntou Gabriel.
- Sim, foi para casa. Mas ainda eu não tinha passado uma semana no convento, morria ele. Foi enterrado em Ouglterard, de onde era a sua gente. Não quero lembrar-me do dia em que eu soube da morte dele!...
Parou, sacudida por soluços e gasta pela emoção. Atirou-se para cima da cama, soluçando ainda. Gabriel apertou-lhe a mão por um bocado; depois, envergonhado por se meter no seu desgosto, deixou-a cair cuidadosamente e caminhou para a janela.
Gretta havia mergulhado num sono pro- fundo.
Gabriel, encostando-se sobre o cotovelo, olhou por alguns momentos para o cabelo despenteado da mulher e para a sua boca entreaberta, escutando a profunda respiração. Gretta possuía um romance na sua vida: um homem morrera por ela. Quase já não sentia pena da pequena parte que ele. seu marido, representava naquela existência. Olhava-a enquanto dormia, como se nunca tivessem vivido juntos, corno marido e mulher. Os seus olhos demoraram-se com curiosidade sobre o rosto e o cabelo: Pensando no que ela teria sido quando rapariga, sentia uma piedade estranha e amiga. Ele não queria dizer, nem a si próprio, que o rosto dela já não estava belo, mas sabia bem que já não era o rosto pelo qual Michael Furey afrontara a morte.
Talvez Gretta não lhe tivesse contado a história toda. Olhou para a cadeira, para onde a mulher atirara a roupa: uma saia caíra ao chão; uma botina permanecera tesa, mas com o cano caído para o lado. Gabriel começou a pensar nas emoções que sentira uma hora antes. Onde é que teriam nascido? Na ceia das suas tias, no seu insensato discurso, no vinho ou na dança? Ou na brincadeira, quando se tinham despedido no hall? Ou do prazer do passeio pela neve, ao longo do rio?... Pobre tia Julia!... Em breve ela também seria uma recordação, como a de Patrick Morkan e do seu cavalo. Surpreendera-lhe um olhar estranho, quando cantara. Talvez muito em breve ele se encontrasse naquela mesma sala, vestido de preto, com o chapéu de seda nos joelhos. As persianas estariam corridas e a tia Kate, sentada ao pé dele, chorando e assoando-se, contando-lhe como morrera a tia Julia. Ele procuraria algumas palavras que lhe dessem algum consolo, e encontraria somente as palavras banais e sempre usadas. Sim, sim: ele sabia que aquilo aconteceria dentro de pouco tempo.