- Fica para outra vez - disse o rapaz.
O carro dirigiu-se para a Rua Westmoreland. Quando passou pelo Ballast Office, eram nove e meia no relógio. Um vento agudo soprava contra eles, vindo do rio. Mr. Kernan estava cheio de frio. O amigo pediu para lhe contar como acontecera aquilo.
- Não posso - respondeu com dificuldade. - Tenho a língua magoada. -Mostra.
O outro olhou para dentro da boca de Mr. Kernan, mas não conseguiu ver coisa alguma. Acendeu um fósforo e, fechando a mão em frente, olhou de novo para a boca que Mr. Kernan abria com obediência. O movimento de balanço do carro fazia oscilar o fósforo. Os dentes de baixo e as gengivas estavam cobertas de sangue coalhado, e parecia faltar um bocadinho à língua. O fósforo apagou-se.
- Está feio - disse Mr. Power.
- Não é nada - respondeu Mr. Kernan, fechando a boca e levantando a gola do casaco.
Mr. Kernan era um viajante comercial da velha escola, que acreditava no valor do nome. Nunca tinha sido visto na cidade sem um chapéu de seda e polainas. Com esses dois artigos de vestuário, dizia ele, um homem estava sempre bem. Conservava a tradição de Napoleão, cuja memória evocava às vezes, por legendas ou por mímica. Não seguira o novo método do negócio; por isso, ficara apenas com um pequeno escritório na Rua Crowe, na janela do qual estava escrito o nome da firma com a morada - Londres, E. C.
N a chaminé daquele pequeno escritório amontoava-se um batalhão de caixinhas de folha, e, na mesa em frente da janela, estavam quatro ou cinco tigelas usualmente cheias, até metade, de um líquido preto. Dessas tigelas, Mr. Kernan provava o chá. Tomava um gole, apreciava o paladar e, depois, deitava fora, para as grades.
Mr. Power, um homem muito mais novo, era empregado no Royal Irish Constabulary Office, no Castelo de Dublin. O arco da sua elevação social interceptava o ponto de declínio do seu amigo, mas o declínio de Mr. Kernan era mitigado pelo facto de que alguns dos seus amigos que o conheceram no seu mais alto ponto de sucesso, ainda o estimavam pelo seu carácter. Mr. Power, um rapaz afável, figurava entre esses amigos. As suas inexplicáveis dívidas já eram proverbiais no seu círculo.
O carro parou em frente de uma pequena casa na Rua Glasvenin, e ajudaram Mr. Kernan a entrar.