Sabia-se que ele recebia informações secretas. Mr. Harford formava por vezes uns pequenos destacamentos que saíam da cidade aos domingos, depois do meio-dia, com o propósito de chegarem o mais depressa possível a qualquer taberna dos arredores, e, aí, os membros do grupo qualificavam-se de viajantes. Mas os seus companheiros nunca consentiram em passar por alto a sua origem. Começara a vida como obscuro financeiro, emprestando dinheiro a trabalhadores, com interesse usurário. Mais tarde, tornara-se sócio dum gorducho, Mr. Goldberg, no Liffey Loan Bank. Apesar de não seguir o código judaico, os seus companheiros católicos falavam dele como dum judeu irlandês e dum ignorante, e viam na pessoa do seu filho, que era idiota, propósitos de desaprovação e castigo divinos por causa de o pai ser usurário. Noutras ocasiões, lembravam-se das boas qualidades que possuía.
- Gostaria de saber para onde é que ele teria ido - disse Mr. Kernan.
Preferia que o acidente ficasse envolvido num certo mistério. Desejaria que os amigos pensassem que ele e Mr. Harford se tinham desencontrado. Os amigos, como conheciam bem a fama de bêbedo de Mr. Harford, ficaram calados. Mr. Power repetiu:
- Tudo está bem quando acaba bem.
Mr. Kernan mudou imediatamente de assunto.
- Aquele tipo novo, aquele médico, era simpático - disse. - Se não fosse ele...
- Se não fosse ele, podia ter sido uma brincadeira para uns sete dias, sem opção.
- Sim, sim - disse Kernan, tentando lembrar-se. - Agora reparo que estava lá um polícia. Rapaz simpático. Como é que aquilo aconteceu?
- Aconteceu que foste maltratado, Tom - disse com gravidade Mr. Cunningham.
- Foi verdade - disse Mr. Kernan, igualmente sério.
- Suponho que te encrespaste com o polícia, Jack - acrescentou Mr. M’ Coy.
Mr. Power não apreciou o facto de se haverem servido do seu nome próprio. Não era muito rigoroso, mas não podia esquecer-se que Mr. M’ Coy fizera, recentemente, uma cruzada à procura de malas para o habilitar a cumprir os seus imaginários compromissos, na província. Ainda se ressentia mais por aquela maneira baixa de jogar, do que pelo facto de ter sido sacrificado. Portanto, respondeu à pergunta como se Mr. Kernan a tivesse feito.
A narrativa fez Mr. Kernan ficar indignado. Ele estava ardentemente convicto dos seus direitos de cidadão; desejava viver para com a sua terra em termos mutuamente honrados, e ressentia-se de qualquer afronta que lhe fizessem.