Ecce Homo - Cap. 3: Porque sou tão sagaz Pág. 34 / 115

..,
Luzes, canções e gôndolas
para o crepúsculo vogavam.


E na minha alma, acorde de uma lira,
como que rocada por mão invisível,
a secreta canção do gondoleiro,
vibrava de ventura melancólica.
- Ah, se alguém a escutasse!...

Em tudo isto, na escolha do estado, do lugar, do clima e do divertimento, domina um instinto de conservação que mais claramente se explica como instinto de auto-defesa. Não ver nem ouvir em demasia não deixar que de nós se aproximem, eis a primeira 'sabedoria, e portanto a primeira prova de que não se é um acaso, mas uma necessidade. A palavra corrente para este instinto de auto-defesa é: «gosto». O seu imperativo manda-nos não só dizer «não» quando o «sim» seria indiferença, mas também dizer «não» o menor número de vezes possível. Convém evitar as situações que, por defesa, exigiriam a constante negativa. A razão está em que os dispêndios com fins defensivos , mesmo mínimos, quando s,e convertem em regra e hábito, determinam um empobrecimento completo, extraordinário e supérfluo. Os nossos grandes dispêndios são os pequenos «nãos» frequentemente repetidos. A atitude de defesa, o não deixar que os outros se aproximem, constituem, não nos enganemos neste ponto, dispêndio de energia, força delapidada com resultados negativos. Quando se persiste no penoso estado de defesa, podemos chegar a debilidade t'8JI, que, a sair da minha casa, se em vez de tranquila e aristocrática Turim, encontrasse uma pequena cidade alemã, o meu instinto ter-se-ia fechado para repelir tudo quanto daquele mundo superficial e cobarde pretendesse invadi-lo. Se encontrasse a grande cidade alemã, esse vício organizado onde nada cresce e onde todas as coisas boas e más, se confundem... não deveria eu então converter-me num ouriço? Mas ter espinhos é uma dissipação e até luxo paradoxal, quando nos é dado não ter espinhos mas mãos abertas.





Os capítulos deste livro