Os Pobres - Cap. 21: XX - A outra primavera Pág. 122 / 158

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– Mas foi a Noite então?...

– A Noite. Uma primavera negra, feita de emoção e de noite. Eles só deitam flor à noite e só podem sonhar à noite.

– São afinal, é certo, sonhos. Uns parecem estátuas vivas, outros são disformes...

– Eu tenho visto. É uma amálgama singular.

Criaturas de fogo, outras de crime. Di-las-íeis revolvidas, homens e sonhos misturados, um rio que tudo acarrete...

– O que eles sonhariam para chegar a materializar!

– De cada canto surgem. É inesperado e imprevisto.

E dos sítios mais negros é que eles irrompem em brasa.

Ontem vi um que parecia uma flor – branco, todo branco ou de luar gelado...

– E falam!

– Falam, pregam! Ouve-lhe os gritos?

Era na realidade uma mistura de sonho e vida. O bairro leproso estremecia. O Prédio, queria ele própria criar. O rio subterrâneo estropia cóleras, engrossara, rompera para a luz. E a Árvore imensa enchia o mundo.

Não era uma árvore como as outras, cheias de frescura e rumores – uma construção viva, com pernadas e folhas que se agitam, um gigante forte e simples. A Árvore era enorme e só dor, esbranquiçada e só dor. E aquela dor materializada e de pé, chamava todos os desgraçados, atraía-os de muito longe até ao fundo do saguão, em frente do hospital de pedra, compacto, e monstruoso.

Noite revolvida até às entranhas, fisionomias revolvidas até ao âmago – espectros de ladrões, de prostitutas e de pobres... À roda a cidade confusa e indistinta, léguas de pedra uniforme, e para lá mais pedra aglomerada. – A cidade era odiosa ou a vida é que era odiosa?

Falaram baixo. Depois calaram-se... A Árvore vibrava toda sensibilidade, duma vida só dor, duma vida irreal e estranha – só dor...

Silêncio. E eles no saguão imundo viram primeiro (todos encolhidos, e encostados uns aos outros) uma paisagem ao luar.





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