I - O enxurro Vem o inverno e os montes pedregosos, as árvores despidas, a natureza inteira envolve-se numa grande nuvem húmida que tudo abafa e penetra. As coisas di-las-íeis recolhidas e cismáticas.
É um rolo misterioso e profundo que vem dum mar desconhecido. E a chuva começa, o ruído doce da chuva que faz sonhar em tantas coisas idas e tristes!
Primeiro a terra embebe-se e incha. E, depois de cheia, a torrente jorra até polir as pedras: ara, põe raízes à mostra, arrasta na aluvião o húmus, as folhas secas das árvores, os cadáveres dos bichos, os detritos desagregados das rochas, que rola juntos, dispersa e reúne, atira, entre a baba da água, para um destino ignoto.
Assim a vida. É um rio de lágrimas, de brados, de mistério. A onda turva põe as mais fundas raízes a mostra, a torrente leva consigo de roldão a desgraça e o riso; sem cessar carreia este terriço humano para uma praia onde as mãos esquálidas dos que sofreram encontram enfim a mão que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar, ficam atónitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se converte em realidade...
É noite. A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam gritos, catástrofes, lamentos. Sou pobre e transido e nada sei da vida, mas sou um príncipe. De que terra?, direis. – Do sonho. E assim neste prédio revolvido me quedo, sozinho e triste, a escutar... Ouço um rio que os mais não sentem.
Cada criatura nascida traz consigo uma fonte, fio de água humedecendo a frincha duma pedra ou levada impetuosa e aos jorros. É ela que tira à vida a sua secura.
Em certos seres pobres e simples quase se ouve essa água correr tão amoravelmente, que dá vontade de nos chegarmos à sua beira. É emoção. Minai, não na deixeis secar.