XI - Luísa e o morto O ladrão escondia-se. Perseguiam-no, fugira, andara, e nessa noite, com um pedaço de pão metido entre o seio e a camisa rota, fora dar ao cais. O céu estava negro e o rio negro corria como lava. A água à noite assusta; fala, atrai, e a sua frialdade tem qualquer coisa de cova. O rumor das águas lembra um ruído de vozes a concertar baixinho coisas pressagas.
Estava uma noite de silêncio húmido e abafado.
Brilhava uma luzinha ao largo e ouvia-se a ressaca subir nas pedras, entrar nas cavidades puídas do cais. E era no ermo o único ruído, aquela respiração estrangulada, apressada, um marulhar humano e trágico na noite funda, silenciosa e opaca.
O Morto aconchegou ao seio o pedaço de pão – o seu jantar – e teve um ah! de alívio. Ali ninguém o procuraria, era como se estivesse sepultado no fundo do rio. Havia quase dois dias que não comia e ia enfim dar a primeira dentada no pedaço de pão. Tinha os joelhos doridos e sentia uma lassidão enorme. Ao sentar-se topou num corpo caído, abandonado. Num sobressalto, de pé, com o pão, a que ia dar uma dentada, na mão, perguntou:
– Quem está aí?
Ninguém: a noite negra e o ruído da ressaca minando as pedras.
– Ouh!
As suas mãos ao tactear deram com uma rapariguinha inerte. A saia estava encharcada e frios os pés.
– Estará morta.
E sossegado tornou a sentar-se para comer o pão.
Mas sentiu-a mexer-se.
– Outra desgraçada... – cismou. – Quem está aí?
E, saindo da treva, uma voz de criança começou:
– Sou eu.
– Tu quem és?
– Não sou ninguém.
– Que estás aqui a fazer?
– Não estou a fazer nada.
– Tu que queres, então?
– Vim deitar-me ao rio.
– Ah!...
– Mas tive medo. A água do rio sempre é mais fria do que a morte.