XIV - O escárnio No ermo da noite o Gabiru vai tecendo a sua teia:
«A matéria também sonha. Nessa mistura de homens e calhaus, torrente que leva consigo gritos e forças embravecidas, turbilhão a rasto pelo infinito fora, não é indiferente ir ser pedra ou nuvem, nascer em macieira de quintal escondido e humilde ou na água fulgindo duma fraga. Não é o acaso que reúne ou afasta as moléculas, para as fundir noutras formas. Há corpos que a química não consegue ligar, porque os separa o ódio, e outros que se atraem com sofreguidão.
Depois da morte a matéria entra num mar. Rios acarretam as moléculas, até que se encontrem as que se devem juntar. O meu coração unido ao teu há-de florir num espinheiro. Será num sítio pobre, mas alguém que passe nesse Abril, sentir-se-á enternecido para sempre.
O meu cérebro procurará o teu cérebro para vogarmos juntos na mansidão dum rio. Ora em terra, ora em pedra buscar-te-ei inconscientemente até dar contigo e te fruir nesse oceano bravio. Se tu fores fonte, irei topar-te e juntos apagaremos a sede a muita raiz esquecida.
Criaturas simples vão ser árvores que de anainhas a gente se sente comovida ao vê-las; os sonhadores, desfeitos em nuvens, andarão nos poentes do mar salgado, e as penedias, que o sol abrasa, as penedias eternas, serão construídas do coração dos maus.
Ei-lo o prodígio, o extraordinário milagre, esta vida que o Pita me mostrou, árvores, nuvens, mar, este monstruoso referver de vida, igual nos montes e nos ígneos mundos. E eu pertenço a este pélago como tu, passo os meus dias a contemplá-lo!
Fico horas a aparar nas mãos o jorro do sol, olhando-o correr...
Por força existe uma razão superior, senão o homem seria Deus, a consciência do universo, o que se não compreende: um deus reles, com misérias e gritos, sempre a escalar o infinito e sempre despedaçado pelos tombos.