Os Pobres - Cap. 8: VII - Primavera Pág. 53 / 158

Elas existem mais pelo que lhes damos de nós mesmos do que pelo que na realidade são. De saudade, de sonho, de lodo e piedade, construíra uma figurinha ofendida e triste, andando no mundo aos tombos, sem pão e sem abrigo. A ele que passara a vida inteira a atear um brasido, cabia-lhe em sorte a Mouca, escárnio de ladrões e de soldados.

A casa das mulheres de dia é fúnebre, mas de noite, à luz do petróleo que esvoaça e deixa tudo numa meia tinta de aflição – candeeiros partidos, luzes fumarentas – lembra um circo de desgraça, onde palhaçadas trágicas façam gargalhar e onde os ladrões e as mulheres enfarinhadas representem a sério vícios e crimes, com risos e choros à mistura, para que o público que paga se possa rir. Vem um Velho, que sem falar gargalha toda a noite ao vê-las maltratadas, e o Morto, pálido soturno, com um laivo na cara. Tem as mãos ósseas e enormes sempre frias e as mulheres temem-no pela sua crueldade e pelo sorriso trágico. Despreza a dor e os gritos.

Sente-se que dele não há a esperar piedade. Só a Mouca se atreve a resistir-lhe. Aparecem outros e toda a noite se ouvem insultos, choros, gargalhadas.

Cada um ali arranca a máscara, transforma-se, fica um ser nu: as feições endurecem, o riso é atroz. O homem tem vontade de ouvir gritos. Paga, maltrata. É lodo, não há que ter piedade. E as mulheres cantam sempre na mesma toada triste e soluçante... Nenhuma fala do passado, com medo ao escárnio, mas guardam-no para si, sem o esquecerem. A história é idêntica e amassada em lágrimas. Elas sabem que nasceram para sofrer e resignam-se: o esgoto é necessário. Tudo na vida se alimenta de gritos, como as raízes na terra se sustentam de água. Enganam-nas e não se queixam. É o fado. Não têm ódio a quem as iludiu: ao contrário, não esquecem esse fio de sonho espezinhado, que ainda sentem correr na vida, longínquo e triste, quase a sumir-se de todo.





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