Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 6: CAPÍTULO II - PÁGINAS SÉRIAS DA MINHA VIDA Pág. 114 / 156

Entendi que devia corrigir a obra do Criador. A minha primeira operação de reforma foi renunciar para sempre às manifestações da inteligência, e jurei comigo de nunca mais dar na estampa escrito que não abonasse uma conscienciosa parvoíce, talismã de tantos que aí correm, e à conta dos quais muitos meus colegas na imprensa se afortunaram e benquistaram com o mundo.

Acabou, pois, aqui, minha vida intelectual.

Nem já coração, nem cabeça. Principia agora o meu auspicioso reinado do estômago.

***

NOTA

O autor remata aqui o período da sua vida de escritor, omitindo fases importantes e subsídios preciosos para a história literária das províncias do Norte. Em romance dispensam-se bem certas miudezas, que não deleitam, nem fazem chorar nem rir; é porém minha opinião que as menores coisas, na vida de um homem estremado do vulgo, são factos significativos.

Silvestre estudou conscienciosamente o viver íntimo da cidade heróica e enfeixou as suas observações sob o título O mundo Patarata, que, no seu modo de sentir, era sinónimo de mundo elegante.

No vigésimo oitavo caderno dos seus manuscritos li as seguintes páginas, que merecem entrar no templo da imortal memória com o seu autor:

Se o mundo elegante no Porto será o mundo patarata de toda parte?

O mundo elegante é a sociedade polida, lustrada, envernizada no corpo e no pensamento, na ação e na palavra, na intenção e na obra.

Patarata quer dizer ostentação vã.

Elegância quer dizer escolha.

Poderão as duas coisas emparceirar-se num mesmo indivíduo, numa mesma classe?

É onde bate o ponto.

Demonstrado que ostentação vã é a máxima pataratice, o mundo elegante geme sob a pressão racionalista da lógica.

Por outro lado, evidenciada a urgência da patarata na vida real, como as visualidades na ilusão teatral, a pataratice é incremento da civilização.





Os capítulos deste livro