Ecce Homo - Cap. 2: Porque sou tão sábio Pág. 13 / 115

sempre, podem disso estar certos: encontro sem demora oportunidade de traduzir o meu reconhecimento ao «malfeitor» (e até pela malfeitoria), ou então maneira de lhe pedir alguma coisa, o que em certos casos obriga mais que dar... Afigura-se-me também que as palavras mais impertinentes, a carta mais inconveniente, têm alguma coisa de cortês, de mais honrado que o silêncio. Aos que se calam quase sempre falta perspicácia e finura de coração. O silêncio é impropriedade, devorar o despeito assinala mau carácter, estraga o estômago. Todos os que se calam são dispépticos.

Não pretendo, como se vê, que se menospreza a impertinência: de modo sobrelevante é ela a mais humana forma de contradição, e no meio da pusilanimidade moderna, uma das primeiras virtudes. Pode inclusivamente constituir verdadeira felicidade, suposto que seja bastante rico para tal. Um deus que baixasse à terra só cometeria injustiças. Tomar sobre si, não o castigo, mas a «falta», eis o que seria realmente divino.

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Ausência de ressentimento, lucidez sobre a natureza do ressentimento, - quem sabe se as não devo também à minha grande doença! O problema não é simples:

Supõe uma experiência, experiência conseguida a partir da força e também a partir da fraqueza. Se alguma coisa podemos objectar ao estado de doença, é que o verdadeiro instinto de cura enfraquece e, no homem, tal instinto é um autêntico instinto de defesa. Não chegamos a desembaraçar-nos de nada; de nada nos libertamos. Tudo nos fere. Homens e coisas surgem em proximidade indiscreta; tudo quanto nos acontece deixa marcas profundas, a recordação é uma ferida purulenta.

Estar doente é propriamente forma de ressentimento. Contra tudo isto há um grande remédio, e um só, e eu chamo-lhe o «fatalismo russo», esse fatalismo sem revolta de que está impregnado 0' soldado russo que, depois de queixar-se da dureza da campanha, acaba por deitar-se em plena neve.





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